A interpretação das narrativas do Antigo Testamento
A narrativa é o gênero literário que mais aparece na Bíblia. Mais de 40 por cento do Antigo Testamento é composto por narrativas. Além disso, no Novo Testamento, grandes porções dos Evangelhos são narrativas, e o próprio livro de Atos, praticamente inteiro, é uma narrativa.
Cremos que a Bíblia é inspirada por Deus, então devemos crer que o Espírito Santo sabia o que estava fazendo quando moveu seus autores a escrever em forma de narrativa, e que este estilo de escrita serve aos propósitos revelatórios de Deus a seu povo.
Então, o assunto desta aula será como fazer um uso apropriado destas narrativas em nosso serviço a Deus.
1 A Natureza das narrativas
1.1 O que são as narrativas do Antigo Testamento
Narrativas são histórias. Porém a palavra história, hoje, tem um sentido de ficção, algo imaginário, como uma “historinha” na hora de dormir, ou uma “estória de aventura”. A Bíblia não é nada disso, pois se trata de verdadeira história de Deus, de seu povo, de como os guiou e guardou. Muito mais do qualquer história épica fictícia, este é o relato verdadeiro de como Deus se revelou na história do ser humano. Por isso o termo narrativa fica mais objetivo e menos prejudicial para descrevermos as ações de Deus na história.
As narrativas do Antigo Testamento nos contam sobre coisas que aconteceram, mas não quaisquer coisas. Elas nos falam de como Deus agiu entre o se povo, como conduziu os acontecimentos mundiais, de como Deus criou todas as coisas e de como Ele operou entre seu povo. As narrativas glorificam a Deus e nos mostram o cuidado de Deus durante o curso da história. Além disso nos dão preciosas lições para nossa vida.
Todas as narrativas têm:
1-) Enredo
2-) Lugar
3-) Personagens
As narrativas do Antigo Testamento porém, estão colocadas dentro de um enredo maior, global, tem um elenco especial de personagens, dos quais os principal e especial é o próprio Deus.
1.2 Três níveis de narrativas do Antigo Testamento
Poderemos entender melhor as narrativas do Antigo Testamento, se percebermos que elas estão sendo contadas em três níveis diferentes.
1-) Nível Superior
2-) Nível Intermediario
3-) Nível Inferior
O Nível Superior é o plano global de Deus, que foi concebido desde a fundação do mundo. Este nível compreende:
1-) A própria criação
2-) A queda da humanidade
3-) poder e universalidade do pecado
4-) necessidade de redenção
5-) Encarnação e sacrifício de Jesus
No nível Intermediario estão os aspectos relacionados a Israel.
1-) A chamada de Abraão
2-) A linhagem de Abraão
3-) Os patriarcas que vieram dele
4-) Escravidão de Israel no Egito
5-) Êxodo do Egito
6-) Conquista de Canaão
7-) Pecados frequentes de Israel e infidelidade
A proteção de Deus, mesmo em meio à infidelidade
9-) Destruição de Israel e cativeiro de Judá
10) Restauração do povo após o exílio
No Nível Inferior temos as narrativas dos personagens individualmente.
1-) Venda de José aos arábes em viagem ao Egito
2-) A história de Gideão e sua dúvida diante de Deus
3-) O adultério de Davi com Bate-Seba, e assim por diante.
Note que cada narrativa individual faz parte da narrativa de Israel no tempo e espaço (Nível Intermediario), que por sua vez, faz parte do Nível Superior, o plano global de Deus, que é a Criação e a Redenção dos seres humanos, para a glória de Deus.
Então, devemos aplicar as narrativas em nossa vida, seguindo este conceito hierárquico que encontramos no Antigo Testamento.
Quando Jesus afirmou que as Escrituras “…de mim testificam”, não estava se referindo a cada uma destas narrativas menores (Nível Inferior), mas sim ao Nível Superior, onde podemos ver de modo amplo a mão de Deus guiando cada passo na história. Ou seja, toda história ocorrida no Antigo Testamento apontava para Jesus, era o pano de fundo para que Jesus fosse revelado.
Desta forma, podemos ter uma narrativa intermediaria, por exemplo a história de José (Gênesis 37-50). Dentro da história de José temos narrativas menores, por exemplo seus primeiros sonhos, sua venda aos árabes, na casa de Potifar, na prisão, ascensão no Império Egípcio e morte.
Não há nada de errado em estudar estas narrativas menores isoladamente. Porém devemos fazê-lo conhecendo a amplitude, conhecendo o contexto maior.
1.3 O que as narrativas do Antigo Testamento não são
1 – As narrativas não são meros relatos de personagens que viviam nos tempos antigos. São, na realidade, histórias daquilo que Deus fez na vida destas e o que fez por meio delas. Deus é o herói das histórias, Ele é o protagonista.
2 – A narrativas do Antigo Testamento não são alegorias, histórias com significados ocultos. Pode haver trechos de certas narrativas que talvez não fiquem claros para nós, podemos não ser informados sobre exatamente tudo quanto Deus fez em uma determinada situação. E, mesmo quando somos informados sobre o que Ele fez, talvez não fique esclarecido como Ele fez ou por que Ele fez. As narrativas não respondem a todas as nossas perguntas, nem foram escritas para isso. Foram escritas para termos noção dos feitos de Deus no plano global. Se ficarmos procurando significados ocultos acabaremos colocando coisas nos textos que não estão lá. Às vezes o desejo de explicar tudo, acaba não explicando nada.
3 – As narrativas nem sempre vão nos ensinar de modo direto. Mas por meio da leitura dos exemplos podemos ser ensinados de uma forma, muitas vezes, mais didática do que alguma porção mais doutrinária da Bíblia. As narrativas nos dão um contato direto com a obra que Deus fez, e este contato pode nos dar um conhecimento que nos ajuda a moldar nosso comportamento. Em última análise, a história do Antigo Testamento, para nós cristãos, é nossa própria história espirtual, pois Deus preservou o povo hebreu para que dele viesse o Messias e fôssemos salvos. Então, mesmo que as narrativas não nos ensinem de modo direto, ilustram o que é ensinado em outros trechos de forma direta e categórica.
4 – Cada narrativa ou episódio individual dentro da narrativa não pode ser analisada microscopicamente. Ou seja, não podemos pegar cada mínima parte da narrativa e tentar tirar alguma lição ou preceito moral. Precisamos avaliar a narrativa como um todo, uma única unidade, pois tentar tirar lições de cada micro parte, em geral, não funciona.
2 Princípios para interpretação das narrativas
Dez princípios para ajudar a evitar erros óbvios na interpretação das narrativas:
1 – Geralmente, uma narrativa do Antigo testamento, não ensina diretamente uma doutrina.
2 – Uma narrativa ilustra uma doutrina ensinada diretamente em outro trecho da Bíblia.
3 – As narrativas registram o que aconteceu, não o que deveria ter acontecido. Portanto, nem toda narrativa tem uma moral de história indentificável e individual.
4 – O que as pessoas fazem na narrativa nem sempre é um bom exemplo para nós. Às vezes é exatamente ao contrário.
5 – A maior parte dos personagens das narrativas do A.T. está longe de ser perfeita. Suas ações também.
6 – Nem sempre somos informados, ao fim da narrativa, se o que aconteceu foi bom ou mau. Devemos julgar com base no Deus nos ensinou em outros trechos da Bíblia.
7 – Todas as narrativas são incompletas. Nem todos os pormenores foram narrados.
8 – As narrativas não foram escritas para responderem nossas dúvidas teológicas.Têm propósito limitado, específico e particular, deixando outros assuntos para serem tratados em outros lugares.
9 – As narrativas podem ensinar explicitamente – quando declara algo de modo claro, ou implicitamente – quando deixa subentendido alguma coisa claramente, sem no entanto declarar.
10 – Em última análise, Deus é o herói de todas as narrativas bíblicas.
3 Exemplos de interpretação de narrativas do Antigo Testamento
3.1 A narrativa de José
A narrativa de José está compreendida entre os capítulos 39 e 50 do livro de Gênesis.
Leia este trecho do começo ao fim e você verá que José é a personagem humana central.
Neste trecho lemos que José era um tanto altivo e até mesmo arrogante. Em parte isto foi devido ao favorecimento que seu pai, Jacó, havia lhe dado. Em consequencia, José sofre com a inveja de seus irmãos e desenrola-se toda a história que já é conhecida.
Será que o fato de José ter tido sucesso na casa de Potifas era por suas qualidades inatas de administrador? Será que o fato de, algum tempo depois, na prisão injustamente, ter alcançado sucesso foi devido à sua gestão do sistema prisonal?
A Bíblia não nos deixa dúvidas: Deus era com José. Por amor a José, Deus o fazia prosperar e alcançar graça diante dos homens. O fato é que, se tentarmos procurar outro herói nesta narrativa, que não seja o próprio Deus, estaremos com o foco errado do que Deus deixou registrado.
Se tentarmos tirar lições para nossa própria vida, apenas da história de José, tiraríamos conclusões erradas. Que moral da história poderíamos extrair daqui?: “Cuidado ao contar seus sonhos”, “Os escravos progridem mais rápido que os nativos”, “Seja um bom administrador antes de ir para a cadeia”.
Se procurarmos no texto alguma coisa que devamos imitar para obter sucesso, ou uma bênção nós não encontraremos. A narrativa está nos contando o que Deus fez com um candidato improvável ao sucesso. Não contém nenhuma regra para se obter sucesso nos negócios. José vai de mal a pior, e não faz nada para conseguir obter sua soltura. Mas é o próprio Deus quem lhe dá todas as habilidades necessárias para isso.
Poderemos vasculhar todas as narrativas menores da vida de José e chegeremos sempre à mesma conclusão: Deus era com José.
Tudo na vida de José já havia sido pré estabelecido por Deus. Veja o texto em Gn. 50:19-20, e você também chegará a esta conclusão.
Esta sucessão de fatos ocorridos com José foi para preservar o povo de Israel para a conquisa de Canaã. Foi no Egito onde os israelitas cresceram e se fortaleceram para entrar na terra que Deus havia prometido a Abrãao.
E tudo isto faz parte da narrativa maior, onde Deus usaria a nação de israel como berço do Messias. Então, tudo o que aconteceu foi para preservação da nação onde nasceria nosso Salvador.
3.2 A narrativa de Rute
O livro de Rute é um livro fácil de ser entendido pois é completo em si mesmo e suas personagens podem ser identificados sem maiores dificuldades.
Neste livro podemos verificar como aplicar o item 9 de nossa lista de princípios de interpretação das narrativas.
Conseguirmos observar o ensinamento explícito é relativamente fácil; porém verificar o ensinamento implícito, requer um pouco mais de habilidade e estudo. Afinal, queremos extrair lições da narrativa, e não colocar lições dentro dela.
A história de Rute pode ser resumida da seguinte forma:
Rute 1 – A viúva Rute, uma moabita, emigra de Moabe para Belém, com sua sogra, também viúva, Noemi.
Rute 2 – Rute colhe as sobras de milho da plantaçào de Boaz, e ouve sobre sua fé e da bondade dela com Noemi, que era sua parente.
Rute 3 – Pela sugestão de Noemi, Rute deixa Boaz saber que ela o ama e quer se casar com ele.
Rute 4 – Baz segue todos os procedimentos jurídicos para casar-se com Rute protegendo os direitos de propriedade do falecido esposo dela. O nascimento de primeiro filho deles, Obede, se torna grande consolo para Noemi. Obede veio a ser avô do rei Davi.
Vamos ver quais ensinos esta narrativa nos transmite:
1 – Rute se converteu a fé no Senhor, o Deus de Israel. Isso não é declarado explicitamente, mas nos fica claro lendo o verso 17 do capítulo 1.
2 – A narrativa nos conta que Boaz era um homem justo que seguia fielmente à lei de Deus. Da mesma forma, isso não nos é explicíto, mas segundo os versos 2:3-13; 2:22; 3:10-12; 4:9-10, fica claro que embora nem todos os israelitas fossem obedientes à lei, Boas o era. Ele guardava o mandamento conforme Levítico 19:9-10, onde Rute se encaixava nas duas categorias: era pobre e estrangeira. Ele observava também outra lei, a da rendenção, conforme Levítico 25:23-24 nos informa.
3 – Fica implícito a nós também o fato da descendência de Boaz e Rute incluir o rei Davi, e por extensão Jesus. Sabemos que Jesus, humanamente falando, pertenceu à linhagem de Davi. Podemos verificar este fato lendo a genealogia em 4:17-21. Eles tinham como saber issto na época? Não. Mas Deus quis que este fato ficasse registrado para que soubéssemos de onde veio Jesus.
4 – A narrativa, nos diz que esta história se passa no tempo dos Juízes. Se lermos o livro de Juízes, notaremos que a sociedade, nesta época, não era muito fiel à lei de Deus. Belém, se destacava por ter cidadãos tementes a Deus, a despeito da maioria infiel. Mas o que há no luvro de Rute que nos diz isso? Praticamente a história toda, exceto o verso 2:22 que subentende que nem todos os belemitas praticavam a lei do respigar corretamente. E as próprias palavras das personagens nos demostram a preocupação e zelo que eles tinham pela lei de Deus.
Devemos notar também que todas as personagens, exceto Rute e Orfa eram cidadãos de Belém. Noemi, seja em tempos de aflição (1:8-9; 13, 20-21), seja em tempos de alegria (1:6; 2:19-20), reconhece a vontade do Senhor, e se submete a ela. Além disso, Boaz mostra ser um verdadeiro adorador e seguidor do Senhor (2:11-12; 3:10, 13), e suas ações, do começo ao fim, confirmam suas palavras.
Até mesmo a maneira como as pessoas se cumprimentavam revelam sua lealdade a Deus (2:4). Note como os anciãos da cidade demonstram sua fé quando abençoam o casamento e a família (4:11-12), e as mulheres abençoam Noemi (4:14). Outro fato importante é como recebem a moabita Rute; fato este que demonstra a fé no Senhor.
Estes fatos demonstram que nossa leitura cuidadosa, e o conhecimento histórico daqueles dias, podem nos revelar lições preciosas, que estão implícitas.
4 Advertência
Implícito não quer dizer secreto ou escondido. Implícito quer dizer que a mensagem pode ser entendida a partir daquilo que é dito, mesmo não sendo declarado literalmente. Nossa tarefa como intérpretes da Bíblia não é ficar escavando mensagens ocultas nos textos. O que o Espírito Santo inspirou é para benefício de todos os crentes, não somente para aqueles que conseguem desvendar possíveis mensagens ocultas nos textos. Não vamos tentar inventar outra história!
5 Algumas precauções finais
Existem alguns possíveis motivos para as pessoas, algumas vezes, tirarem lições das narrativas que não estão lá.
1 – Desespero por informações que as ajudarão em sua situação específica.
2 – Impaciência. Querem a resposta de Deus agora, deste livro, deste capítulo.
3 – Esperam, erroneamente, que tudo na Bíblia se aplique à sua própria vida individual.
A Bíblia é o recurso de Deus para nós. Porém, nem sempre terá respostas específicas e pessoais para tudo quanto as pessoas gostariam, e não contém todas as informações em cada capítulo ou versículo.
A fim de que não segamos esta tendência, alimos os seis principais erros de interpretação que as pessoas cometem, ao procurar respostas em partes isoladas da Bíblia. Emboa estejam alistadas aqui para as narrativas, podem servir para outros estilos também.
1 – Alegorização – Ao invés de se concentrarem no significado claro do texto, procuram lições obscuras, secretas. Há trechos alegoricos na Bíblia (Ezequiel 23 ou algumas partes do Apocalipse, por exemplo). Porém, nenhuma das alegorias na Bíblia é uma simples narrativa.
2 – Descontextualização – O desconhecimento da história, da narrativa maior, e a concentração apenas nas pequenas narrativas, nos faz perder a interpretação completa, aquilo que Deus fez e quis deixar registrado ao seu povo. Se desconsiderarmos este fatores, poderemos fazer a Bíblia dizer qualquer coisa que queiramos.
3 – Seletividade – É semelhante à descontextualização. É escolha proposital de palavras e frases específicas da narrativa, sem considerar o contexto histórico.
4 – Combinação falsa – Combina trechos de diferentes versos, e tira uma lição desta combinação. Um exemplo extremo deste método é interpretar que os verdadeiros inimigos do crente estão dentro da casa de Deus, ao invés de fora. Pois o Salmo 23 diz para Deus preparar uma mesa na presença dos inimigos de Davi, e Davi habitaria para sempre na casa de Deus. Logo, os inimigos estariam dentro da casa de Deus, senão como Deus faria uma mesa para ele diante de seus inimigos?
5 – Redefinição – Quando o sentido claro do texto deixa as pessoas sem emoções, ou não provoca qualquer tipo de êxtase espiritual, o sentido claro é prontamente redefinido para que estas coisas aconteçam.
6 – Autoridade extracanônica – Uso de algum tipo de material de apoio ou escritos especiais, ou ainda livros que alegam ter revelações bíblicas. Desta forma, creem que os mistérios da Bíblia serão revelados. As seitas geralmente fazem este tipo de coisa, e tratam a Bíblia como um livro cheio de enigmas que exige um conhecimento especial para interpretá-la.
Além destas precauções, é importante saber que as narrativas bíblicas dizem respeito a seus personagens. Podemos, claro, aprender muito com elas, mas nunca espere que Deus faça com você exatamente a mesma coisa que fez com as personagens das narrativas.
Nem ache que Deus quer que você faça exatamente as mesmas coisas.
A narrativa de José, diz respeito a José. Diz respeito à fortma como Deus usou a vida dele para cumprir seus propósitos. Não tome a história de José como algo que também vai acontecer em sua vida.
A narrativa de Rute glorifica a Deus, e o benefício que Ele deu aos belemitas e a Rute, não tem a ver conosco. Esta história narra de forma maravilhosa os ancestrais do rei Davi, e por extensão, do Senhor Jesus.
Nós temos a tarefa de aprender com base nas narrativas, e não fazer tudo quanto está descrito lá. Só porque alguém fez determinada coisa na Bíblia não significa que temos a obrigação, ou permissão de fazer também.
As narrativas são preciosas porque demonstram o amor de Deus na História, e a forma como Ele conduziu tudo, para que o mundo recebesse o Salvador. Porém, para termos instruções sobre ética pessoal e vidã cristã devemos ir para outras partes das Escrituras, onde estes valores são ensinados mais clara e diretamente.
Então, podemos concluir que a riqueza de variedades da Palavra, deve ser nosso aliado, e não um recurso que tenhamos de desvendar seus mistérios.
VIA GRITOS DE ALERTA
http://milhoranza.com/2009/09/08/narrativas-do-antigo-