Na semana passada, cometi uma omissão lamentável. Deixei de dar destaque neste blog à entrevista que Duda Teixeira, da VEJA, fez com Esam El-Eriam, porta-voz da Irmandade Muçulmana. Eu a reproduzo agora, na íntegra. Aqui e acolá, há um acalorado debate sobre a adesão da Irmandade a princípios democráticos. Bem, vocês conhecem o meu ceticismo desde a primeira hora. Então vamos combinar: nesse particular, os leitores do blog não precisam acreditar nem no que eu digo nem no que dizem os que pensam o contrário. Que tal deixar que fale o porta-voz da própria Irmandade? Ele deve saber o que pensa seu grupo, não é mesmo? Vejam que entrevista interessante, sobretudo por aquilo El-Eriam não diz… Prestem atenção a cada detalhe.
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Desde que foi fundada no Egito, em 1928, a Irmandade Muçulmana persegue a mesma finalidade: construir um estado subordinado à sharia, a lei islâmica. O objetivo foi confirmado em 2007, quando a organização divulgou um programa partidário que defendia a criação de um conselho de sábios, não eleito, com a missão de analisar a compatibilidade das decisões governa¬mentais com as normas religiosas. Desde a queda do ditador egípcio Hosni Mubarak. no mês passado, no entanto, a Irmandade esconde seus planos fundamentalistas e se vende a incautos com um discurso democráti¬co. A aparente moderação tem data para terminar. O repórter de VEJA Duda Teixeira entrevistou Esam El-Erian, porta-voz da Irmandade Muçulmana, e ele deixou claro que seu grupo tem como objetivo assumir o poder no país no prazo de cinco anos e que tem uma agenda pronta para quando isso ocorrer. A entrevista foi feita no escritório de El-Erian na capital egípcia, próximo a um hospital popular sustentado pela Irmandade Muçulmana.
A irmandade pretende construir um estado islâmico no Egito, a exemplo do que ocorreu no Irã após a revolução de 1979? Criará leis para proibir o consumo de álcool ou saias curtas, por exemplo?
O Egito não é o Irã. Não é a Arábia Saudita. Não é a Turquia.
Então, qual é o objetivo político da Irmandade Muçulmana?
Isso depende da atmosfera e do contexto em que nos encontrarmos. Atualmente, nossa meta é conseguir a unidade nacional e instituir uma nova ordem no Egito. Isso significa uma nova Constituição, leis melhores e a retomada da economia, o que será muito importante nos próximos cinco anos.
Por que cinco anos?
Alguns políticos dizem que a transição vai durar seis meses. Outros falam em um ano. Nós achamos que essas estimativas estão equivocadas. A transição vai demorar cinco anos.
Por que a Irmandade declara que não almeja mais do que um terço das cadeiras no próximo Parlamento, cuja eleição deve ocorrer neste ano?
Nós não queremos a maioria no Congresso.
Por que não?
Porque, como eu disse, este é um momento de união, não de competição.
Será sempre assim? A Irmandade nunca vai querer mais do que um terço do Congresso?
Esta é a nossa estratégia há 25 anos. Estamos em um momento de transição, preparando o país para nossa próxima estratégia, a qual será iniciada após cinco anos. Só então haverá competição. Agora não há tempo para isso. O momento atual é de união.
Qual é o projeto de país da Irmandade Muçulmana para daqui a cinco anos, quando acabar o período que o senhor considera de união entre as forcas políticas?
Por favor, pare de fazer essas perguntas. Volte daqui a cinco anos e faça essa mesma indagação. Daí, sim, eu responderei (EI-Erian dá uma risada).
Como será o Egito daqui a cinco anos?
Por favor…
Que opinião o senhor tem a respeito das brigas recentes entre muçulmanos e cristãos coptas?
Isso é a contrarrevolução.
O Egito conseguirá manter-se estável durante essa transição, mesmo com esses conflitos religiosos?
Se conseguirmos evitar as intervenções de americanos e de israelenses, será muito bom. São eles os grandes perdedores dessa revolução, e não Hosni Mubarak.
O senhor está dizendo que americanos e israelenses incentivam as disputas religiosas?
Claro! Mubarak era um parceiro estratégico para eles.
Se é assim, por que americanos e israelenses não agem para permitir que Mubarak volte ao poder?
Se ele fizer isso, será morto.
Morto?
Depois de um julgamento, claro.
Eu e meu fotógrafo viajamos até Soul, onde uma igreja e casas de cristãos foram incendiadas. Os moradores muçulmanos nos impediram de entrar na vila, acusaram-nos de ser espiões estrangeiros e nos ameaçaram… Parece-me improvável que estivessem a serviço de americanos e israelenses.
Se quiser, posso dar o telefone de uma pessoa na vila de Soul para acompanhá-los em segurança.
Quem está ateando fogo às igrejas?
O pessoal do Partido Nacional Democrático (de Mubarak), os agentes da segurança de estado e os criminosos. Estou triste porque bispos e o papa Shenouda III (da Igreja Ortodoxa Copia) apareceram em público para reclamar dos ataques apresentando-se como cristãos. Isso não é bom.
Eles não podem declarar abertamente sua fé?
Os cristãos devem se defender como civis, não em nome de um setor da sociedade. Somos todos egípcios.
O clérigo muçulmano Yusuf al Qaradawi, apresentador de um programa na rede Al Jazira, do Catar e membro da Irmandade Muçulmana, diz que o marido tem o direito de bater na mulher, defende os atentados suicidas e acredita que os países islâmicos devem ter armas nucleares para aterrorizar inimigos. Qual será o papel de Qaradawi no novo Egito?
Ele visitou nosso país, ficou por três dias e voltou ao Catar. Aqui, é apenas uma voz entre muitas outras. Qaradawi apresentou um islamismo moderado, tolerante e pacífico para muitas pessoas. Por isso, muita gente confia nele. É um sábio.