Leide das Neves, 6 anos, foi a primeira vítima do césio-137 (Foto: Reprodução / TV Anhanguera)
A dona de casa Lourdes das Neves Ferreira, mãe de Leide das Neves
Ferreira, de 6 anos, que morreu em 23 de outubro de 1987, sofre com a
falta da filha, quase 25 anos depois da sua morte. Ela conta que se
sente culpada pela morte da menina, a primeira vítima do acidente com o
césio-137 em Goiânia
, e uma das quatro mortes oficiais, segundo os governos estadual e
federal. O sofrimento da garotinha que se encantou com o brilho azul
emitido pelo césio se tornou o símbolo da tragédia. “Fica passando um
filme na minha cabeça. São 25 anos de sofrimento, de dor, de tristeza e
de angústia. Eu me arrependo e cobro de mim mesma. Se eu não tivesse ido
tomar banho, talvez ela não tivesse ingerido [partículas de pó do
césio]”, afirma Lourdes.
Tudo começou com a retirada de um equipamento de radioterapia para o
tratamento de câncer. O aparelho foi esquecido dentro de um prédio
abandonado, onde funcionava uma clínica de radiologia, no Centro de
Goiânia. Levada para um ferro-velho, a peça foi desmontada a marretadas.
A cena foi reproduzida várias vezes em filmes e programas de TV.
O objetivo do dono do ferro-velho era aproveitar o metal, mas a
descoberta de um pó dentro do equipamento, que brilhava à noite, chamou a
atenção de muita gente, inclusive de crianças. A situação de Leide foi
ainda pior porque, ao fazer um lanche depois de brincar com a novidade,
acabou ingerindo, acidentalmente, partículas do pó misturadas ao
alimento. Isso aconteceu longe dos olhos da mãe.
As mortes ocorreram poucas semanas depois da descoberta do que passou a
ser considerado o maior acidente radiológico do mundo -- com uma
substância radioativa usada em hospitais. Leide, a tia dela, Maria
Gabriela, e dois funcionários do ferro-velho foram as vítimas que não
suportaram os efeitos da radioatividade.
Os corpos das quatro primeiras vítimas do césio-137 estão enterrados em
um cemitério municipal de Goiânia, o Cemitério Parque. Os túmulos têm
mais que o dobro do tamanho dos outros. Debaixo do mármore, existem
toneladas de concreto. Cada caixão pesava cerca de quinhentos quilos.
Tudo isso para bloquear a emissão de material radioativo.
Os túmulos estão em um canto do cemitério, em um local bastante
tranquilo, bem diferente daquele dia do enterro, quando uma multidão
protestava contra a decisão de enterrá-los em um cemitério comum. “Eu
estava dopada com remédios, mas vi tudo. As pessoas jogavam pedra,
jogando pedaço de meio-fio”, recorda-se Lourdes.
Uma parte da minha vida se foi com ela"
Lourdes das Neves
Apesar do tumulto, prevaleceu a vontade da maioria e o enterro não
mudou de lugar. Se tivesse sobrevivido, Leide estaria hoje com 31 anos
de idade. “Uma parte do meu coração e da minha vida se foi com ela. A
forma como tudo aconteceu foi uma coisa louca, dolorosa. Só eu mesma
para saber. Não desejo que isso aconteça com ninguém”, conta a mãe. Ela
diz ainda que não consegue passar um único dia sem se lembrar da filha e
da tragédia vivida por sua família. “Não tem como não lembrar”
(assista abaixo à entrevista na íntegra).
Lourdes também perdeu o marido na tragédia. Ivo Alves Ferreira morreu
16 anos depois do acidente radioativo. Ele carregava o arrependimento
por ter levado para casa o pó do césio para a filha brincar. O irmão de
Ivo, Devair Alves Ferreira, que era dono do ferro-velho onde a peça foi
aberta, morreu sete anos depois da tragédia, em 1994. Na época, quando
ainda passava pela descontaminação, ele falou sobre a tragédia provocada
pela luz hipnotizante. “Eu só me sinto triste porque de uma forma ou de
outra eu prejudiquei toda a minha família”, disse Devair à TV Globo, em
outubro de 1987.
Um dos irmãos de Devair e Ivo e atual presidente da Associação das
Vítimas do Césio (AVCésio), Odesson Alves Ferreira cita uma frase dita
por Devair que marca o episódio: "Eu me apaixonei pelo brilho da morte”.
Na opinião de Odesson, os irmãos Devair e Ivo sobreviveram à tragédia,
mas não conseguiram superá-la. “Os dois entraram em um processo de
depressão. O Devair se sentia responsável por ter colocado toda a
família naquela situação. O Devair se embrenhou pelo caminho dos vícios.
O da bebida, principalmente", lamenta, em entrevista ao
G1.
Já Ivo, afirma Odesson, se culpava por ter levado o pó de césio para
casa e deixado a filha brincar com ele. "O Ivo fumava seis maços de
cigarro por dia. É uma maneira que eles [Ivo e Devair] encontraram de se
suicidar. Eles viam que estavam morrendo lentamente e continuavam
fazendo. Tentamos muito tirar o vício dos dois, mas não conseguimos.
Eles achavam que tinha que ser daquele jeito e acabou sendo. Eles
morreram muito jovens. Devair morreu em 1994, aos 42 anos, e Ivo, em
2003, aos 54”, conta Odesson.
Odesson mostra as sequelas do contato com o
césio (Foto: Versanna Carvalho/G1)
Marcas
Da mesma forma que muitas das pessoas que manusearam o césio, Odesson,
que só ficou com o pó do césio por cerca de dois minutos, carrega na mão
sinais de contato com o material. “Além da palma da mão, que eu perdi
[mostra pele mais escura, resultado de um enxerto com parte da pele da
barriga], perdi parte de um dedo e outro ficou atrofiado”, mostra.
Maria Abadia Ferreira -- mãe de Odesson, Devair e Ivo -- viu a família
inteira ser contaminada, inclusive ela. “Eu não gosto nem de lembrar. É
tanta coisa, é muito duro. A minha família foi a mais atingida”,
lamenta.
Odesson conta que até hoje a família não se refez completamente. “Uma
coisa que dói muito na gente é o afastamento, principalmente da família.
A nossa família era muito próxima, gostava de se reunir para fazer um
almoço, um churrasco. Hoje é muito ruim. As pessoas não podem mais
juntar porque o assunto fica desagradável. A gente não consegue fazer um
almoço de família sem tocar no assunto. E isso dói muito”, desabafa.
G1/GRITOS DE ALERTA