O que têm em comum Hitler, Gêngis Khan, o assassino canibal Jeffrey Dahmer e o advogado que defendeu O.J. Simpson? Eles estão dançando num inferno, segundo o evangelho de Trey Parker e Matt Stone, os criadores de The Book of Mormon. A comédia musical da dupla que nos deu a irreverente série animada South Park estreou com bilheteria esgotada e críticas que pareciam descrever uma ressurreição. A música e o libreto são assinados por Parker, Stone e Robert Lopez, o criador do atrevido Avenue Q.
Desde a estreia de The Producers, de Mel Brooks, há dez anos, um espetáculo não eletrizava a Broadway com a mistura de sátira impiedosa e o bochicho que faz a alegria de cambistas.
Mas Trey Parker, agnóstico, e Matt Stone, ateu, ridicularizam a narrativa mórmon, não os membros da igreja. Trey Parker é fã confesso dos musicais e acha que eles têm o kitsch em comum com a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
A história começa na capital mundial da religião, Salt Lake City, em Utah. Uma dupla de missionários, Elder Cunningham e Elder Price é escolhida para fazer conversões em Uganda. No aeroporto, os rapazes ganham um bota-fora de uma personagem aparentemente desgarrada do Rei Leão, satirizado por sua representação idílica da África. Mas a sátira apenas começou. Na Uganda devastada por aids, pobreza e guerra, a dupla é saudada num vilarejo por um refrão contagiante, Hasa Diga Eebowai (sim, uma alfinetada no Hakuna Matata, do Rei Leão), dirigido a Deus e que não pode ser traduzido neste jornal. Os moradores do vilarejo cantam o refrão porque "se você tiver um provérbio", a vida parece melhor.
Parker e Stone se dizem há muito fascinados pela cultura da igreja fundada no Estado de Nova York por Joseph Smith, em 1830. O Livro de Mórmon revelado a Smith pelo anjo Morôni, afirma que Jesus Cristo ressuscitou no norte do Estado e narra civilizações antigas que teriam vivido a poucas horas de Times Square. Deus morava mais longe, num planeta chamado Kolob. A igreja hoje tem cerca de 1 milhão de seguidores no Brasil e seus missionários, a maioria homens, se destacam pela modéstia do uniforme - camisa branca e gravata preta.
O mormonismo cresceu mais no Brasil depois que a liderança da igreja nos Estados Unidos, em 1978, declarou que Deus havia mudado de ideia sobre a maldição de pessoas de pele escura, autorizando a ordenação de negros.
No vilarejo do musical, o missionário Cunningham confessa nunca ter lido Livro de Mórmon - "muito entediante" - e decide converter a população local apimentando a narrativa com ingredientes de O Senhor dos Anéis, Guerra nas Estrelas e até um sapo cuja função também não pode ser explicada aqui. Os habitantes, oprimidos por um líder paramilitar com nome impublicável, ficam seduzidos pelas histórias, são batizados e encenam sua versão da escritura Mórmon para o líder mórmon que chega de Utah. Palavrões, escatologia e blasfêmia formam o número musical apoteótico e hilariante.
The Book of Mormon não é uma peça de propaganda antirreligiosa. É uma sátira à credulidade que admite que muitos precisam acreditar no divino. Trey Parker e Matt Stone sempre fizeram paródia do lixo na cultura americana, mas demonstram afeto pelo ridículo resultante. Com um espetáculo que acende vela para a linhagem tradicional de musicais como The King and I e The Sound of Music, os dois meninos terríveis da comédia animada apresentam para uma nova geração um gênero que não fazia parte de seu vocabulário digital.
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
Desde a estreia de The Producers, de Mel Brooks, há dez anos, um espetáculo não eletrizava a Broadway com a mistura de sátira impiedosa e o bochicho que faz a alegria de cambistas.
Mas Trey Parker, agnóstico, e Matt Stone, ateu, ridicularizam a narrativa mórmon, não os membros da igreja. Trey Parker é fã confesso dos musicais e acha que eles têm o kitsch em comum com a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
A história começa na capital mundial da religião, Salt Lake City, em Utah. Uma dupla de missionários, Elder Cunningham e Elder Price é escolhida para fazer conversões em Uganda. No aeroporto, os rapazes ganham um bota-fora de uma personagem aparentemente desgarrada do Rei Leão, satirizado por sua representação idílica da África. Mas a sátira apenas começou. Na Uganda devastada por aids, pobreza e guerra, a dupla é saudada num vilarejo por um refrão contagiante, Hasa Diga Eebowai (sim, uma alfinetada no Hakuna Matata, do Rei Leão), dirigido a Deus e que não pode ser traduzido neste jornal. Os moradores do vilarejo cantam o refrão porque "se você tiver um provérbio", a vida parece melhor.
Parker e Stone se dizem há muito fascinados pela cultura da igreja fundada no Estado de Nova York por Joseph Smith, em 1830. O Livro de Mórmon revelado a Smith pelo anjo Morôni, afirma que Jesus Cristo ressuscitou no norte do Estado e narra civilizações antigas que teriam vivido a poucas horas de Times Square. Deus morava mais longe, num planeta chamado Kolob. A igreja hoje tem cerca de 1 milhão de seguidores no Brasil e seus missionários, a maioria homens, se destacam pela modéstia do uniforme - camisa branca e gravata preta.
O mormonismo cresceu mais no Brasil depois que a liderança da igreja nos Estados Unidos, em 1978, declarou que Deus havia mudado de ideia sobre a maldição de pessoas de pele escura, autorizando a ordenação de negros.
No vilarejo do musical, o missionário Cunningham confessa nunca ter lido Livro de Mórmon - "muito entediante" - e decide converter a população local apimentando a narrativa com ingredientes de O Senhor dos Anéis, Guerra nas Estrelas e até um sapo cuja função também não pode ser explicada aqui. Os habitantes, oprimidos por um líder paramilitar com nome impublicável, ficam seduzidos pelas histórias, são batizados e encenam sua versão da escritura Mórmon para o líder mórmon que chega de Utah. Palavrões, escatologia e blasfêmia formam o número musical apoteótico e hilariante.
The Book of Mormon não é uma peça de propaganda antirreligiosa. É uma sátira à credulidade que admite que muitos precisam acreditar no divino. Trey Parker e Matt Stone sempre fizeram paródia do lixo na cultura americana, mas demonstram afeto pelo ridículo resultante. Com um espetáculo que acende vela para a linhagem tradicional de musicais como The King and I e The Sound of Music, os dois meninos terríveis da comédia animada apresentam para uma nova geração um gênero que não fazia parte de seu vocabulário digital.
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
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