O Novo Dicionário Aurélio apresenta uma definição superficial sobre o
termo “celibato”. Diz apenas que é “o estado de uma pessoa que se mantém
solteira”.
Em uma visão bíblica e religiosa, porém, é muito mais do que
isso. Celibato é a ausência de atividade sexual na vida de um indivíduo. Ocorre
geralmente por motivos religiosos, embora qualquer pessoa possa exercê-lo. O
celibato pode (e às vezes até deve) ser exercido por apenas um período. Os
solteiros devem, com certeza, praticá-lo, bem como os viúvos e separados. Mas
também pode ser praticado temporariamente por motivos espirituais (1Co 7.5).
Nosso enfoque, aqui, não é o estado de celibato temporário, mas sua prática
permanente.
Claro que a Bíblia fala em celibato, mas nem tudo o que leva
este nome é bíblico. Distorcido ao longo dos anos por influências gnósticas e
estranhas, esta prática se tornou, por imposição humana, um “preceito de homens”
e “doutrina de demônios” (1Tm 4.1), distante dos critérios de Deus. A
Enciclopédia Britânica assim se expressou sobre o assunto: “A ligação entre o
cristianismo e o judaísmo e a aceitação do Antigo Testamento pela Igreja cristã,
tendia a perpetuar na Igreja primitiva a estima que os hebreus tinham por casar
e ter numerosos filhos”.
Logo, se o estado celibatário se tornou
sinônimo de um estado espiritual, isso não ocorreu como produto da pregação
apostólica. Outras influências fora da cultura hebraica e do contexto bíblico
levaram a prática a extremismos danosos.
Quando o celibato é
bíblico?
Dizer que o celibato nunca é bíblico, não é verdade. Podemos
encontrar base para ele tanto nos sinópticos quanto nos escritos paulinos. A
história, sacralizada como tradição no catolicismo, não é normativa. Há exemplos
e afirmações neotestamentárias que devem ser levadas em conta. Ignorá-los tem
gerado pesados e amargos frutos.
Quando é uma decisão
pessoal
Quando Jesus falou sobre pessoas que se decidiram por viver uma
vida celibatária por amor ao reino de Deus, foi bem explícito em apresentar isso
como uma decisão puramente pessoal. Não é uma adesão a algum regulamento fixo da
lei mosaica ou a qualquer outro ponto das Escrituras, mas uma escolha deliberada
e própria. “Porque há eunucos que nasceram assim; outros foram feitos eunucos
pelos homens; e há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus”
(Mt 19.12; grifo do autor).
Em Israel, não havia uma classe instituída de
eunucos como havia em outras nações. Aliás, os castrados eram proibidos de
entrar na congregação do Senhor (Dt 23.1). Quando a Bíblia faz referência aos
eunucos, geralmente eles pertencem a outras nações. Eram guardas de harém (Et
2.3,14,15), ou serviam os reis e rainhas em diversos cargos (Jr 38.7; At 8.27).
Conforme o Dicionário da Bíblia John D. Davis, não é muito certo que o termo
eunuco tenha o mesmo significado em todas as passagens das Escrituras, pois há
casos em que falam de eunucos casados, como, por exemplo, Potifar, que era
casado (Gn 37-39).
Também se faz, ocasionalmente, menção de eunucos entre
o povo de Israel ou mesmo em Judá (2Rs 24.15; 25.19; Jr 29.2;). John D. Davis
afirma que “os eunucos existentes no reino de Judá eram, pela maior parte, senão
em sua totalidade, estrangeiros”, como vemos em Jeremias 38.7. Lembrando ainda
que Jesus fala de eunucos de nascença e de eunucos castrados pelos
homens.
De qualquer maneira, não havia algo como uma instituição de
“eunucado” como se isso tivesse alguma virtude em si. A cultura judaica
valorizava o casamento, a procriação e a varonilidade. O conceito de renúncia ao
casamento por amor ao reino de Deus é um elemento novo dentro da fé
escriturística, com um caráter estritamente pessoal.
Quando o celibatário
recebeu o dom para “aceitar isto”
Há um segundo ponto importante no
celibato bíblico. Além da decisão individual, o celibatário deve possuir aptidão
para permanecer em tal estado. Jesus terminou sua sentença com a frase: “Quem
puder aceitar isto, aceite-o” (Mt 19.12), mostrando que nem todos estavam aptos
a receber tal preceito. Jesus disse ainda que nem todos poderiam receber esta
palavra, mas somente aqueles a quem foi concedido recebê-la
(v.11).
Paulo, o apóstolo celibatário, afirma a questão de vocação ainda
com mais veemência ao responder às perguntas dos coríntios sobre o casamento.
“Porque quereria que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de
Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, e outro de outra” (1Co 7.7). Pela
revelação bíblica, não basta alguém desejar ser celibatário para sê-lo. É
necessária uma capacitação especial de Deus.
Quando o celibato leva a uma
maior santificação a Deus
O motivo do celibato bíblico é só um: maior
disponibilidade para Deus e o seu reino (Mt 19.12). O fato de um cristão não
querer se casar pode ser ocasionado por motivos que não um chamado para servir a
Deus integralmente. Pode haver motivos de ordem social, física ou psicológica. O
celibatário vocacionado o fará com pleno prazer, não se sentirá oprimido pela
ausência de um marido ou esposa, mas utilizará sua vida completamente a serviço
de Deus.
Paulo coloca o celibato neste foco, mostrando que os que são
casados têm de cuidar de coisas relativas a esta vida para agradar seu cônjuge,
enquanto que os solteiros cuidam das coisas do Senhor apenas, tendo maior
consagração, tanto no seu corpo quanto no seu espírito (1Co 7.32-34).
Não é a mera abstinência sexual que constitui o valor de um celibato
voluntário, mas o resultado desta abstenção no serviço divino. Este ponto é
importante, pois não é a ausência do ato sexual que torna o celibatário mais
consagrado, mas uma vida desligada das coisas deste mundo, voltada somente para
Deus e seu reino.
Quando o celibato não é bíblico?
Embora o
celibato clerical católico seja o mais conhecido, houve e há outros grupos que
entendem o celibato como sendo necessário e obrigatório, pelo menos para algumas
classes especiais dentro do grupo, criando uma espécie de casta de eunucos
espirituais. Grupos menores, na História passada e em nossos dias, exigem o
celibato como um estado automático de maior santidade e por isso o impõe como
exigência para adesão ao grupo.
Quando é imposto por outros
Uma
coisa é incentivar o celibato. Outra é exigi-lo. Uma coisa é crer que uma vida
de solteiro, voltada só para as coisas divinas, é melhor. Outra coisa é
estabelecer que só possa ser dessa forma. Dizer que alguém é obrigado ao
celibato se deseja ser um ministro da Igreja de Cristo é uma ordenança humana e
um ensino antibíblico: “Mas o Espírito expressamente diz que, nos últimos
tempos, apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a
doutrinas de demônios, pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo
cauterizada a sua própria consciência, proibindo o casamento...” (1Tm 4.1-3;
grifo do autor).
Não existe qualquer lugar nas Escrituras que estabeleça
um estado de solteiro obrigatório para quem quiser tomar sobre si o encargo da
obra de Deus. O celibato obrigatório teve uma evolução histórica, por
influências não-apostólicas e não-bíblicas. Ainda lemos na Britânica: “O
celibato de clérigos não parece ter sido obrigatório durante os primeiros
séculos cristãos. A opinião formalmente sustentada por alguns de que o
celibatário teve origem apostólica tem sido largamente abandonada. A liberdade
de escolha era a norma [...] No Ocidente, o Concílio de Elvira na Espanha (306
d.C.) decretou o celibato nas seguintes palavras: ‘é inteiramente proibido a
bispos, sacerdotes, diáconos e todos os clérigos colocados no ministério viver
com suas esposas e filhos gerados. Quem o fizer será destituído de sua posição
de clérigo’”.
Quando o celibatário não consegue se conter
Paulo
foi taxativo ao dizer que se alguém não pode se conter, que então se case, pois
é melhor casar do que viver abrasado (1Co 7.9). Isso quer dizer que somente
alguém que é celibatário por dom e vocação deve insistir em permanecer nessa
condição. Os demais estão desobrigados pela Palavra a tal esforço.
Quando
entende o sexo como inerentemente mal
A imposição celibatária nasceu da
falta da distinção entre a perversão sexual e o ato sexual propriamente dito. A
perversão sexual é completamente condenada nas Escrituras. Já o ato sexual faz
parte dos planos de Deus desde a criação do homem, pois, ao criá-lo, disse:
“Crescei e multiplicai-vos” (Gn 1.28). “E viu Deus que também isto era muito
bom” (v.31).
Outras influências não-bíblicas foram responsáveis por esse
desvio. Essa visão, provavelmente, tem raízes gnósticas. O gnosticismo
classificava a matéria como algo inerentemente mal, sendo produto não de um Deus
bom e sábio, mas de outra entidade inferior. Eusébio, em sua História
eclesiástica, tece comentário sobre uma seita denominada “encratitas”, originada
de dois hereges gnósticos: Saturnino e Marcião. Eusébio escreve o seguinte,
citando Irineu: “Aqueles que brotaram de Saturnino e de Marcião, chamados
encratitas, proclamavam abstinência do casamento, deixando de lado o propósito
original de Deus e censurando tacitamente quem os fez macho e fêmea para a
propagação da raça humana”.
Ainda prossegue Eusébio, no mesmo capítulo,
citando Irineu e repreendendo a posição desses gnósticos com respeito ao
matrimônio: “Também o casamento, declarava [um certo Taciano] juntamente com
Marcião e Saturnino, era apenas corrupção e fornicação”.
“Os gnósticos,
que identificavam a matéria com o mal, procuravam uma forma de criar um sistema
filosófico em que Deus, como espírito, seria livre da influência do mal e no
qual o homem seria identificado, no lado espiritual de sua natureza, com a
divindade [...] Em seu sistema, não havia lugar para a ressurreição da carne
[...] Também os maniqueus, outra seita gnóstica, popularizou o celibato. O
maniqueísmo provocou tal exaltação da vida ascética a ponto de ver o instinto
sexual como mal e enfatizar a superioridade do estado civil do solteiro”.
Muitos líderes do século 2o tinham uma visão do casamento influenciada
pelo gnosticismo. Chegavam a interpretar o casamento como uma conseqüência da
queda de Adão e não como algo anterior a ele, o que não é certo. Ficavam com uma
visão conflitante do casamento, como sendo necessário e desaconselhável ao mesmo
tempo: “A hesitação dos ortodoxos casuístas sobre este interessante assunto trai
a perplexidade de homens relutantes em aprovar uma instituição que eles eram
compelidos a tolerar. Alguns gnósticos foram mais consistentes. Eles proibiram o
uso do casamento”.
Quando o faz por “proibição demoníaca”
O
apóstolo Paulo foi celibatário por plena voluntariedade. Mas ele não encarava
tal fato como uma obrigação ministerial. Muito pelo contrário. Questionou os
coríntios em sua primeira epístola: “Não temos nós o direito de levar conosco
uma esposa crente, como fazem os demais apóstolos, e os irmãos do Senhor e
Cefas?” (1Co 9.5).
Logo, o celibato obrigatório não era instituição
apostólica. Uma nota da Bíblia de Jerusalém sobre esta passagem, diz: “Como quer
que seja, em vista dos problemas materiais, os apóstolos casados, como Cefas
(Pedro), geralmente levavam a esposa em missão”.
É difícil traçar uma
genealogia histórica para o celibato clerical. Com certeza, não foi apostólico
tanto quanto não é bíblico. Nunca foi geral no cristianismo e, mesmo quando foi
imposto aos clérigos, não era praticado uniformemente: “Por exemplo, a igreja
oriental sempre permitiu que seus sacerdotes casassem. O celibato clerical é
exigido somente dos monges. Os bispos ortodoxos orientais são tradicionalmente
escolhidos entre os monges, portanto, celibatários. O sacerdote simples da
paróquia, no entanto, tem permissão para se casar antes de ser ordenado. Se for
solteiro por ocasião de sua ordenação, deve permanecer assim. A tradição
católica romana desenvolveu paulatinamente a prática do celibato clerical
universal, de tal modo que todos os sacerdotes da Igreja devem permanecer
solteiros e castos”.
A argumentação do catolicismo sobre o celibato
clerical é de que não há imposição. Quem faz o voto sacerdotal o acata
voluntariamente. Isso, todavia, constitui uma imposição humana e não divina. As
pessoas não deviam ter de escolher entre ser ministro cristão e ter uma família.
As duas alternativas não são incompatíveis. Dizer que alguém só pode ser
ministro se for celibatário é proibir o casamento para o clérigo.
Quando,
porém, lemos a Palavra de Deus, vemos que esta posição está absolutamente em
conflito com ela. Veja o que Paulo escreveu sobre algumas das características
dos ministros: “Esta é uma palavra fiel: Se alguém deseja o episcopado,
excelente obra deseja. Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de
uma mulher [...] tendo seus filhos em sujeição [...] se alguém não sabe governar
a sua própria casa [família], terá cuidado da igreja de Deus?” (1Tm 3.1-5;
grifos do autor). E ainda: “Por esta causa te deixei em Creta, para que [...] de
cidade em cidade, estabelecesse presbíteros, como já te mandei: aquele que for
irrepreensível, marido de uma mulher, que tenha filhos fiéis [...] (Tt 1.5,6;
grifos do autor).
Quando leva a desvios sexuais
Não faz muito
tempo, a mídia mundial ficou repleta de denúncias de práticas homossexuais e
pedófilas por parte do clero católico. Isso sem falar no Movimento dos Padres
Casados, que é uma dissidência católica e um protesto aberto contra o celibato
obrigatório.
Não é de se espantar coisas desse tipo. Quando os impulsos
sexuais não são refreados por um dom da graça de Deus, serão extravasados de uma
forma ou de outra. Assim escreveu o apóstolo em sua epístola aos Romanos: “E
semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da mulher, se
inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão,
cometendo torpeza” (1.27; grifos do autor). A torpeza foi o resultado de deixar
“uso natural da mulher”.
Deus criou o homem como um ser sexuado e
estabeleceu princípios pelos quais essa necessidade seria legitimamente
atendida. Isso está claro na Bíblia: “Macho e fêmea os criou” (Gn 1.27); “Não é
bom que o homem esteja só” (Gn 2.18); e, por fim, “Deixará o homem seu pai e sua
mãe e se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne” (Gn 2.24). E ainda o
apóstolo Paulo arremata: “Todavia, para evitar a fornicação, cada homem tenha a
sua mulher e cada mulher tenha o seu marido” (1Co 7.2 – Bíblia de Jerusalém).
A insistência na obrigatoriedade do celibato clerical, tanto na prática
quanto na matéria teológica, é plena demonstração de uma “consciência
cauterizada” ou, como traduz a Bíblia de Jerusalém, “hipocrisia dos mentirosos,
que têm a própria consciência como que marcada com ferro quente” (1Tm
4.2).
Considerações finais
Se alguém deseja ser celibatário, sente
que tem um chamado de Deus para isto, sente-se capacitado por Deus para assumir
essa posição, então que seja. Mas, definitivamente, não há qualquer grau de
pecaminosidade no casamento e, especificamente, no ato sexual praticado pelo
marido e a mulher. “Mas, se te casares, não pecas; e, se a virgem se casar, não
peca” (1Co 7.28).
Para terminar, vale a observação do dr. Otto Borchert
sobre Jesus e o casamento:
“Não podemos duvidar, nem por um momento, que
Jesus via grandes benefícios no casamento. Em algumas de suas parábolas, Ele
retratou a alegria do casamento como a maior de todas, chegando a se comparar
com o noivo. Ele mesmo tomou parte em um casamento e experimentou o maior prazer
com os ramos de oliveira (filhos) que são o resultado de tal união. Além disso,
invocou a lei da criação (Deus os fez macho e fêmea) contra Moisés, revelando o
pleno significado intrínseco e a seriedade desta lei (Mt 19.4). Aqueles dentre
nós que o conhecem, reconhecem que Jesus nunca foi partidário das pessoas que
proíbem o casamento (1Tm 4.3), da mesma forma, jamais podemos crer que seja
possível que Ele [Jesus] tenha dado o conselho oferecido pelo seu apóstolo de
que é melhor não se casar”.