O advogado Gilberto Garcia lembra as organizações religiosas devem observar o Plano Diretor de cada município e o Estudo de Impacto na Vizinhança
A reabertura do templo-sede da Igreja Mundial do Poder de Deus, em São Paulo, no dia 3 de março, pode ter sido o fim de uma batalha espiritual no entender do apóstolo da denominação, Valdemiro Santiago, e de seus fiéis. Mas na prática foi apenas um capítulo a mais na queda de braço cada vez mais forte entre o poder público e as igrejas evangélicas. Não se trata, como alardeiam determinados líderes, de uma luta das trevas contra a luz – embora, em certas situações, a má vontade de gestores públicos contra organizações religiosas fique evidente. Após veementes protestos, nos quais denunciou perseguição religiosa e ensaiou um protesto popular que não ocorreu, a Igreja Mundial contratou técnicos para deixar o prédio de acordo com a legislação. O que chamou a atenção no caso, iniciado em dezembro passado, quando a prefeitura da capital paulista lacrou o imóvel na Rua Carneiro Leão, no bairro do Brás, por falta alvará de funcionamento e problemas de higiene e segurança, é a precariedade com que igrejas são instaladas. Realizam-se cultos em galpões sem qualquer estrutura e até mesmo em pequenos sobrados e garagens residenciais.
O templo da Igreja Mundial lacrado, vigiado pela Guarda Metropolitana: caso reacendeu discussão sobre legalização de espaços de culto
Se, por um lado, o processo representa a abertura de mais espaços para a pregação do Evangelho, por outro, seus frequentadores são submetidos ao desconforto ou, pior ainda, ao perigo. Foi assim em 1998, quando o templo da Igreja Universal do Reino de Deus instalado num antigo supermercado de Osasco (Grande São Paulo) veio abaixo durante um culto, deixando 25 mortos e quase 500 feridos. Constatou-se depois que as vigas de sustentação do telhado, de madeira, tinham apodrecido e ninguém as trocou. Mais recentemente, o principal templo da Igreja Renascer, no centro de São Paulo, caiu no dia 18 de janeiro do ano passado. Nove fiéis morreram e outros cem tiveram ferimentos. As ações de indenização correm na Justiça, e enquanto a igreja esforça-se por reabrir logo sua sede, o Ministério Público (MP) suspendeu o alvará que autorizava a reconstrução.
O que acontece na maior cidade brasileira é típico. O MP estadual e a Prefeitura de São Paulo realizam rondas permanentes pelos bairros, notificando responsáveis e até lacrando imóveis fora das condições legais de uso. Cerca de 500 templos foram interditados e mais de quarenta, fechados na capital paulista. Segundo consta, a maioria das autuações é contra igreja evangélicas, ainda que uma simples inspeção constataria irregularidades em centenas de clubes, bares e boates abertos ao público. “Sempre que há denúncia, fazemos inspeções”, informa o secretário de Controle Urbano, Orlando de Almeida. Ele rechaça a suspeita de que a Secretaria tenha as garras mais afiadas contra os imóveis de uso religioso: “Fazemos diligências para reprimir irregularidades independente do tipo de estabelecimento”. De acordo com a Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, as autuações não acontecem apenas por documentação irregular, mas também por excesso de barulho nos cultos.
Inadequação é a regra – “A imensa maioria dos templos que proliferaram em São Paulo funcionam em lugares adaptados como cinemas e teatros, que não oferecem condições de segurança. Noventa por centro dos imóveis com este uso não são adequados a abrigar o fluxo de pessoas que recebem”, confirma Edin Sued Abmanssur, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e autor do livro As moradas de Deus (Fonte Editorial), sobre o espaço físico de igrejas pentecostais na capital. “A fiscalização é falha e não há muito controle sobre esses locais”, admite o superintendente do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea), Ademir Alves do Amaral. Segundo ele, qualquer alteração em local onde haja concentração de pessoas deve ser acompanhada por um profissional. “Até vibração sonora pode abalar uma estrutura já comprometida”, avisa.
A fiscalização é dificultada porque abrir legalmente uma igreja evangélica no Brasil é coisa das mais fáceis, e em tese qualquer pessoa pode tornar-se um líder espiritual, independente de formação teológica. Com pouco mais de 100 reais é possível organizar juridicamente uma instituição religiosa; depois, basta um cantinho qualquer para as reuniões e pronto. Em São Paulo, só no caso de templos com capacidade para quinhentas pessoas ou mais é necessário autorização do Departamento de Controle de Uso de Imóveis (Contru)“O ordenamento jurídico nacional abrange normas federais, estaduais e municipais que regulamentam a atuação das organizações religiosas”, lembra o advogado Gilberto Garcia. “É preciso observar o que está estabelecido no Plano Diretor de cada município e regulamentos como o Estudo de Impacto de Vizinhança”. Mas proibições, mesmo, inexistem, de modo que somente depois de verificado um problema, e quase sempre após uma denúncia ou acidente, é que o poder público pode fazer algo. Os números confirmam: de acordo com dados da prefeitura, a cada dois dias nasce uma nova igreja na Grande São Paulo.
“Esse fenômeno acontece com mais intensidade no Sudeste”, aponta o coordenador nacional de pesquisas no Instituto Brasil 21 e missionário de Servindo Pastores e Líderes (Sepal), Luis André Bruneto. “Isso se dá por dois motivos básicos: concentração populacional e concentração de renda”. A migração religiosa é outro fenômeno que alimenta o processo. Em média, uma a cada três pessoas já mudou de crença, aderindo à fé protestante, de acordo com levantamento do Centro de Estudos da Metrópole. Em Brasília, a situação não é diferente – conhecido pela grilagem de terras públicas, o Distrito Federal abriga mais de oitocentos templos em situação irregular. De acordo com a Terracap, empresa que cuida da ocupação do solo em Brasília e no seu entorno, igrejas evangélicas funcionam em áreas públicas sem contrato de concessão de uso, ou com autorização já vencida. Fica no ar a impressão de que a proliferação de igrejas no contexto urbano está descontrolado.
Diluição do sagrado – A multiplicidade das denominações e igrejas livres, no Brasil, é um fruto positivo da liberdade de crença – contudo, envolve também a flexibilização de alguns valores. “Em muitos lugares, a caracterização de templo tem se diluído na mesma velocidade do crescimento”, acrescenta Luis André Bruneto, da SEPAL. Ele enxerga certa perda do sagrado. “No passado, o templo era lugar santo. Hoje, é um espaço multiuso, muitas vezes criando sincretismos religiosos”. No entender do presidente do Fórum dos Secretários de Missões das Assembleias de Deus do Nordeste, a explosão das igrejas, que se observa também nas áreas metropolitanas daquela região, deriva da personalização dos ministérios. “Muitas congregações, ainda que grandes e ricas, estão estribadas no nome de seu pastor”, aponta o pastor Francisco Paixão Cordeiro.
O fundamento deste ideal de crescimento, de acordo com professor Ricardo Mariano, da PUC do Rio Grande do Sul, tem princípios na Reforma Protestante, segundo a qual cada fiel pode construir sua linha de pensamento “A abertura de templos improvisados em garagens e edificações de todo tipo constitui uma longa tradição no pentecostalismo”, esclarece o especialista. Ele explica ainda que, nos primórdios do movimento, a primeira igreja pentecostal fundada em Los Angeles, nos Estados Unidos, teve início num imóvel onde antes funcionava um estábulo. “Isso se deve ao evangelismo conduzido por leigos, também tradicional nos meios pentecostais. Há a legitimidade das cismas nos meios protestantes, uma vez que a igreja, a tradição e a hierarquia eclesiástica não detêm a posse exclusiva da verdade divina”, acrescenta.
“Esse crescimento das igrejas tem acontecido pelo simples fato de que pessoas transformadas atraem outras pessoas”, lembra o pastor Costa Neto, da Igreja Comunidade Cristã Videira, em Fortaleza (PE), que atende 1,7 mil pessoas em seu instituto social. O testemunho, neste caso, faz toda diferença e é um dos pilares de crescimento na região. No entanto, há quem peça uma revisão, em prol do futuro, para que esse crescimento não apenas seja feito dentro das regras legais de urbanização como também com espiritualidade. “É preciso uma nova elaboração da teologia da fé evangélica da oração, que busque priorizar não somente os aspectos formais, mas sobretudo, uma relação com Deus mais profunda”, apela o pastor Estevam Fernandes, da Igreja Batista de João Pessoa (PB).
Fonte: Cristianismo Hoje