Daniel
Dias cresceu no interior de Minas Gerais com uma “mania” que
enlouquecia os pais: quebrar próteses. A má formação congênita dos
membros nunca foi problema para a criança que se metia no meio dos
amigos em peladas pelas ruas. O tempo passou, e a bola deu lugar a
piscina. A rotina de “destruidor”, entretanto, permanece intacta. No
lugar das pernas mecânicas, Daniel quebra recordes. Um atrás do outro.
Mundiais, paralímpicos, de medalhas… Vencer é um verbo que ele conjuga
diariamente. Em Londres foi assim. Literalmente. Com seis ouros em seis
provas individuais (passou em branco nos dois revezamentos), o nadador
volta ao Brasil como maior atleta paralímpico da história do país.
Consagração de quem riscou ainda na infância uma palavra do dicionário:
limitação.
“Sempre aceitei (a deficiência) e fui feliz assim. É questão de escolha.
E eu escolhi ser feliz. O resto nós buscamos com determinação e fé”.
Daniel Dias buscou e escreveu, com apenas 24 anos, uma história
impressionante. Há apenas sete anos no esporte – começou após ver
Clodoaldo Silva brilhar em Atenas-2004 – o paulista de Campinas já
coleciona 15 medalhas em duas Paralimpíadas: 10 ouros, quatro pratas e
um bronze. O currículo tem ainda 19 ouros em Parapans, outros oito em
Campeonatos do Mundo, dez recordes mundiais e um prêmio Laureus, o
“Oscar do Esporte”.
Conquistas suficientes para colocar o nadador entre os maiores do
esporte brasileiro. A divisão entre olímpicos e paralímpicos não cabe
mais. E o próprio Daniel é claro ao definir: “Eu sou um atleta. Ponto
final”.
Com o Parque Aquático de Londres já completamente vazio, Daniel Dias
recebeu o GLOBOESPORTE.COM para entrevista exclusiva minutos após nadar
sua última prova. Um filme passou por sua cabeça, a sensação de dever
cumprido era evidente, mas muita coisa ainda está por vir. Na conversa, o
brasileiro confessou as noites em claro na Vila Olímpica de Londres,
lembrou o momento exato onde o esporte competitivo entrou em sua vida e
revelou que, apesar da vontade de descansar, comer hambúrguer e tomar
refrigerante, os Jogos do Rio já ocupam sua mente. Confira todo o
bate-papo abaixo:
Oito provas, seis ouros, quatro novos recordes mundiais e um
paralímpico. Tudo ocorreu dentro do esperado? A sensação é de meta
cumprida?
Se eu falar que não foi dentro do esperado, vou estar de brincadeira
(risos). Os Jogos foram fantásticos. Marcaram a minha carreira para
sempre. Saio com o objetivo cumprido. Sem dúvidas. Seis provas
individuais, seis ouros. Estou muito feliz e grato a Deus.
Esse resultado o coloca em outro patamar a nível mundial? Você já se vê como um dos maiores nomes do esporte paralímpico?
Acho que o pessoal passa a respeitar mais não somente a mim, mas o
Brasil. Passam a saber que também somos potência e estamos investindo no
esporte, que 2016 promete. Não seremos só Daniel e André. Muita gente
está chegando aí. Espero que as pessoas vejam o esporte paralímpico de
outra maneira no Brasil. Esse negócio de respeito eu deixo para os
adversários. Acho que eu já era reconhecido. Essas conquistas são
excelentes para o país.
Você evitou comentar muito o recorde durante a competição. Agora acabou.
Você já é o maior atleta paralímpico da história do Brasil. A ficha já
caiu?
Antes dos Jogos, eu confesso que não tinha parado para pensar nisso. Mas
com o tempo eu fui ganhando as medalhas, vocês (jornalistas) foram
perguntando, aí começou a passar pela cabeça. Hoje posso dizer que as
duas últimas noites eu não dormi, dormi muito pouco. Fiquei pensando em
tudo que tem acontecido, que eu estava entrando para história do esporte
brasileiro… Saio de Londres completamente feliz, honrado por ganhar
tantas medalhas em tão pouco tempo. Posso dizer que Deus está comigo.
Isso não é para qualquer atleta. Em duas Paralimpíadas, estou entrando
para história. Tenho pelo menos mais duas e espero carimbar de vez o meu
nome.
Qual a primeira coisa que passa na cabeça quando você bate na borda,
olha o placar e vê seu nome no primeiro lugar, recorde mundial?
Primeiro, é muita gratidão a Deus por essa oportunidade de bater
recordes, melhorar minhas marcas, ganhar medalha. Depois, logo busco os
meus pais nas arquibancadas. No sábado, não consegui achá-los (risos).
Mas sempre procuro logo e quando acho é uma satisfação incrível ver a
comemoração e a alegria deles. Além disso, esse público de Londres foi
incrível. Todos os dias estavam lotados. O pessoal gostou bastante de
mim, foram grandes momentos.
Você diria que estes Jogos mudaram definitivamente a visão externa do
esporte paralímpico? Acabou aquela história de se falar muito em
superação e as Paralimpíadas estão consolidadas como competição, alto
rendimento?
Sem dúvidas. Londres vai ficar marcado na história do movimento
paralímpico por conta dessa mudança. É algo que sempre buscamos, fazer
com que as pessoas possam, sim, ver a superação dos atletas, é até
legal, mas ver também que a galera rala, treina muito. Muitos recordes
mundiais foram batidos. Estamos em um momento onde se o cara não se
dedicar 100% a isso, não vai chegar a lugar nenhum. O que pedimos agora é
investimento. É algo que tem aumentado muito.
Então, pensamos: imagina se investissem mais, onde poderíamos chegar?
Podemos dizer que hoje quem vem para as Paralimpíadas é visto como
atleta, assim como qualquer outro? Acabou aquela visão de uma pessoa com
deficiência que se supera no esporte?
Sem dúvidas. Podemos definir assim: eu sou um atleta. Ponto final.
Queria que você voltasse um pouco no tempo, lá em 2004, quando você
descobriu o esporte paralímpico e decidiu fazer parte disso. Há algum
momento marcante dos Jogos de Atenas que acabou mudando sua vida?
Foi um dia em que eu estava assistindo ao Jornal Nacional e passou uma
chamada de que o Clodoaldo tinha conseguido mais uma medalha para o
Brasil nas Paralimpíadas. A partir daquele momento, eu pensei: “Poxa, eu
posso praticar um esporte”. Sempre gostei muito. Em 2005, já comecei a
nadar e hoje estou aqui, com seis medalhas.
Você não fazia nada? Sua relação com o esporte era somente de torcedor?
Profissionalismo nenhum. Era só da escola. Na educação física ou depois
da aula, quando ficava jogando futebol. Tudo que tinha para fazer, eu
fazia. Vivia jogando futebol, basquete, vôlei… Ficava no meio dos
amigos. Até que conheci o esporte paralímpico e comecei a treinar
natação.
É nítido para quem te acompanha no dia a dia que você é um cara muito
despojado, independente. Sempre foi assim ou mudou depois do esporte?
Sempre, sempre. Sempre fui uma pessoa muito feliz, ativa. Era de quebrar
muitas próteses. Chegava em casa e até apanhava às vezes (risos). Minha
mãe falava: “Você quebrou a prótese de novo?”. Mas eu não aguentava.
Ela dizia: “Hoje você não vai jogar porque sua prótese não aguenta”. Eu
sentava, ficava vendo meus amigos e não conseguia ficar ali parado. Não
tinha essa. Acabava tendo que ir para São Paulo arrumar a prótese. Era
sempre assim. Eu morava em Camanducaia, Minas. Posso dizer que fui uma
criança como qualquer outra, independentemente da deficiência. Meus pais
sempre me trataram como qualquer outra criança. Sou grato a eles por
hoje ter essa independência, por ser assim.
Nunca teve nenhum tipo de trauma ou preocupação por conta da deficiência? A cabeça sempre foi boa, tranquila?
Sempre tive em mente que se Deus me fez assim foi por algum propósito.
Sempre aceitei e fui feliz assim. É questão de escolha. E eu escolhi ser
feliz. O resto nós buscamos com determinação e fé.
São duas Paralimpíadas, 15 medalhas, 10 ouros… Qual é seu próximo sonho?
O Alex Zanardi depois de ganhar o ouro disse que precisava de uma coisa
nova, um outro desafio, porque a missão estava cumprida. E você?
No momento, meu desafio é descansar (risos). Vai ser difícil. Mas no
esporte sempre temos o que melhorar. No caso da natação, é uma briga
contra o relógio constante. Quero melhorar meus estilos, acrescentar
ainda mais ao esporte paralímpico brasileiro. Podemos chegar mais longe
ainda. E quero fazer história. Mostrar o valor do ser humano para as
pessoas, seja deficiente ou não. Somos capazes de realizar nossos
sonhos, sem colocar limites para realização e capacitação.
Você tem a consciência de que, assim como o Clodoaldo te inspirou,
muitas crianças te vêem pela televisão e também vão começar a praticar
esportes, buscar uma nova realidade?
É como foi dito em Londres: “Inspirando gerações” (a frase foi o lema da
competição no Reino Unido). Sei da minha responsabilidade e espero um
dia, quem sabe, estar dando uma entrevista ao lado de uma pessoa que me
assistiu e estará me superando. Seria fantástico. Torço para que isso
aconteça. Para que consigamos melhorar ainda mais o esporte em geral no
Brasil.
Aos 24 anos, você já disse que deve ter no mínimo mais dois Jogos
Paralímpicos pela frente. A maior vencedora da história tem 46 medalhas e
32 ouros. Dá para buscar essa marca?
Caramba (risos)! Aí é muita coisa. É bem difícil. Quanto mais velho
vamos ficando, temos que passar a priorizar uma prova ou outra. Até o
Rio dá para nadar tudo isso novamente, depois não. Mas é algo que não
penso agora. De repente, no futuro posso querer superar, mas no momento
só quero ajudar o crescimento do esporte paralímpico brasileiro.
Por falar em Rio, Londres ainda nem acabou, mas já bate a ansiedade para competir em casa?
Sem dúvidas. Na última prova (revezamento 4 x 100m medley) quando a
Grã-Bretanha foi anunciada o Centro Aquático veio a baixo. Fiquei
imaginando como vai ser no Rio. O local lotado, todo mundo torcendo. Vai
ser incrível para o esporte em geral no Brasil com Copa, Paralimpíadas,
Olimpíadas…. Temos que aproveitar e curtir esse momento para entrar
para história do mundo.
Depois de um ciclo com tantas vitórias, o que você planeja agora para as
férias? Algo em especial que você quer fazer, comer, curtir?
Vou comer muito hambúrguer, tomar refrigerante… São coisas que tem na
Vila e eu fiquei longe! Vou aproveitar agora. Também vou me casar em
novembro, curtir um pouco a família, o casamento e treinar só ano que
vem (Daniel dá uma gargalhada e olha para o treinador Marcos Rojo).
Para encerrar, nós sabemos que você é corintiano fanático. Uma viagem para o Japão para torcer no Mundial faz parte dos planos?
Vai, Corinthians (risos)! É difícil. Esse ano tem sido único. Como
torcedor, ver o título da Libertadores foi fantástico. Posso dizer que
foi o ano do Timão. Eu com seis medalhas, o Corinthians campeão… Espero
que possamos ganhar o Mundial para fechar 2012 com chave de ouro.