A Bíblia nos diz que Deus não faz acepção de pessoas. Acontece que muitos distorcem esse ensino, afirmando que, por isso, Deus ama a todos, e Cristo morreu por todos. A lógica é a seguinte: se Deus não faz acepção de pessoas, não escolheu uns e rejeitou outros; e Cristo não pode ter morrido na cruz apenas para salvar uma parte da humanidade, mas o seu caráter expiatório favoreceu a todos os homens indistintamente. Caberia ao homem apossar-se dessa salvação ou não.
A questão é como uma bola de neve: quanto mais se parte de um pressuposto falacioso, e se tenta justificá-lo, mais a mentira ganha corpo, e acaba por se distanciar sobremaneira da verdade. Por fim, não mais como uma pequena bola mas uma avalanche, se volta contra o tolo, a soterrá-lo em meio a uma profusão de equívocos. Resta-nos uma pergunta: então, qual é a verdade?
Os versos que muitos se utilizam para argumentar que Deus ama a todos indistintamente, e por isso não faz acepção de pessoas são: "Porque, para Deus, não há acepção de pessoas" [Rm 2.11]; e, ainda: "Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas" [At 10.34]. Ora, isoladamente, os versos parecem corroborar o pensamento vigente entre os religiosos atuais, ao ponto em que não seria difícil chegar-se à conclusão universalista, a qual assevera que todos serão salvos, até mesmo o diabo e seus anjos, e o inferno é uma simples metáfora das contradições existentes na criação [1]. Esse seria o grand-finale de todo um pensamento confuso, ilusório e não-bíblico, se fosse verdade. Mas, felizmente, não é.
Assim, o que esses versos querem dizer?
No primeiro, Paulo nos mostra a imparcialidade de Deus. Explicando que ninguém pode se considerar inescusável diante dele, e apelar para a inocência por não conhecê-lo e a sua lei; visto a ignorância não ser argumento de defesa para o pecador, "porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados" [Rm 2.12].
Ao perguntar: "Por quê? Somos nós mais excelentes?"; Paulo respondeu: "De maneira alguma", evidenciando que não há distinção entre os homens, e para Deus todos são iguais, pois tanto judeus como gentios estão debaixo do pecado [Rm 3.9]. "Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" [Rm 3.23]; não há um justo sequer, não há quem entenda ou busque a Deus. Todos se extraviaram, e se fizeram inúteis. "Não há quem faça o bem, não há nem um só" [Rm 3.10-12]. Portanto nenhum de nós merece piedade diante dele; ninguém é melhor aos seus olhos; pelo contrário, todos somos iguais, ímpios, maus, rebeldes, insolentes, escória, indignos até mesmo de existir; e somente não somos consumidos por causa da sua misericórdia, que não tem fim [Lm 3.22].
Nessa multidão de ignorantes, pecadores e desobedientes, Deus, por sua única vontade, exclusivamente pelo seu querer, elegeu alguns para a salvação e o restante para a perdição. O fato é que ninguém merece ser salvo, mas por sua graça, escolheu aqueles que amou por intermédio de seu Filho, Jesus Cristo; "justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus" [Rm 3.24]. Ou seja, Deus escolheu aqueles que amou eternamente, e amou aqueles que escolheu eternamente. Se a eleição fosse pela presciência, ao se antever aqueles que teriam fé, e escolhê-los pela fé que teriam, Deus faria, nesse caso, acepção de pessoas. Ele buscaria uma justificativa na própria pessoa, um mérito nela, e a fé seria esse valor de referência que traria significado a quem a detém, e o fundamento para Deus salvá-la. A eleição não seria pela graça, mas por mérito pessoal, vista ser alcançada pela fé, como fruto do esforço humano e, assim, Deus preferiria-o em detrimento dos que não a têm. Acontece que isso seria justificação por obras, mas nenhuma justiça própria pode dar a salvação, "mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo" [Tt 3.5].
Sendo assim, é complicado e perigoso acreditar que o homem possui a fé antes de se regenerar, pois demandaria uma obra pessoal, numa ação proveniente de uma energia inerente ao homem, alheia à vontade de Deus. Seria o mesmo que alguém ter um fósforo. Ele acenderia o pavio, cujo fogo o percorreria, consumindo-o, a fim de se deflagrar a regeneração. Ele incitaria o Espírito Santo a operar até mesmo contra a sua vontade, de tal forma que, ao menos nesse aspecto, ele se sobreporia a Deus em poder; o qual não poderia fazer nada sem que o pavio fosse acesso, sem que se desse o startpara que, somente então, pudesse agir e iniciar a obra de transformação. Deus se tornaria em um agente passivo [com tudo à mão menos o fósforo], enquanto eu e você seriamos quem na verdade ativaria todo o processo. Nós teríamos a chama suficiente, sem a qual Deus seria um mero espectador; com toda a sua graça amontoada pelos cantos, pronto para entrar em ação, mas impotente para fazê-lo por si mesmo. Deus teria quase tudo, mas não teria o principal: o controle sobre toda a cronologia do evento. Sem o fósforo, e alguém para acendê-lo, o arsenal de graça e misericórdia seriam inúteis e lançados no lixo. Se um homem apenas não se decidisse a usar a sua fé, de nada adiantaria Deus ter preparado toda a sua obra. É como uma festa onde o anfitrião encomendaria o melhor para se comer e beber, e ninguém fosse convidado, ninguém aparecesse de surpresa. A festa não teria sentido, nem os preparativos. O anfitrião veria o salão vazio, a comida intocada, o silêncio, e o despropósito de todos os arranjos comemorativos.
Isso colocaria a nossa vontade em preeminência, numa escala superior à divina. E, Deus, talvez impassível, talvez ansioso [dependendo da cosmovisão] não poderia fazer absolutamente nada, a não ser esperar que a sorte trouxesse alguém à festa; ou que acendessem o pavio.
Poderia ainda usar a seguinte ilustração: guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um comerciante ter um grande estoque de um determinado produto, abrisse a loja, e aguardasse os clientes aflorar, se acotovelar, em busca da mercadoria. Caso eles não viessem, o que faria? Provavelmente, uma liquidação. Para esvaziar o depósito. E não é interessante que o Evangelho não seja um produto de fácil aceitação? E que todos o busquem ansiosamente? Ao ponto em que, para aceitá-lo, o corrompem, distorcendo-o de tal forma que se descaracterize e perca o seu caráter exclusivista e seletivo? Tornando-se palatável, digerível, e assim, facilmente acessível a todos? Possível sem a necessidade de arrependimento e perdão? Contudo, esse não é o Evangelho, mas o antievangelho, que simplesmente acomoda as pessoas aos seus próprios pecados, tornando-as ainda mais cegas e tolas do que já são. O Evangelho separa, divide, leva a perseguições, e até mesmo à morte, como nos diz o Senhor: "Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas"[Lc 6.22-23]. O que nos leva à seguinte pergunta: a aceitação do Cristianismo e o seu crescimento numérico reflete-se nessa profecia, que garante o ódio do mundo a Cristo e a conseqüente perseguição, ódio e rejeição tanto à sua palavra quanto aos seus discípulos? Se não, o que estamos a fazer? Por que não somos perseguidos? Por não causarmos divisão no mundo? Por que somos aceitos como se fôssemos iguais a eles? Em algum aspecto, o que se tem é um falso cristianismo, que quer e procura ser aceito e não rejeitado, que está pronto a aliar-se ao mundo, e não sofrer as consequências naturais por amor a Cristo, e em seu nome. Alguém pode imaginar uma coalisão ou aliança entre luz e trevas?[2]
Pois bem, Paulo está dizendo que ninguém pode se autojustificar diante de Deus, logo, Deus não vê nenhuma qualidade no homem para escolhê-lo; e a escolha recai no próprio Deus, que a faz segundo os seus critérios, segundo a sua vontade, sem a ingerência ou mérito algum de quem quer que seja. Como está escrito: "Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece" [Rm 9.15-16]. A eleição é algo que vem do Senhor, não do homem [Jn 2.9]. É garantida por sua santidade, perfeição, sabedoria e justiça. Não será determinada por obras humanas, pois todas as nossas justiças são "como trapos de imundícia" diante de Deus, porque todos somos como imundos em nossas iniquidades [Is 64.6-7]. Em suma, todos somos condenáveis diante de Deus. Por isso, em sua justiça, ele não faz acepção de pessoas.
No segundo caso, Pedro, após ser advertido por Deus em sonho para não preferir os judeus em detrimento dos gentios, na proclamação do Evangelho, reconheceu que ele devia ser apresentado a todas as criaturas, sem exceção. O que ele disse em "Deus não faz acepção de pessoas" foi confessar que as "boas novas" têm de ser levadas também aos gentios, e que não são exclusividade dos judeus, ao ponto dele crer que tanto esses como aqueles seriam salvos pela graça do Senhor [At 15.7-11]. A morte de Cristo na cruz devia ser anunciada entre todos os povos e nações, para que, assim, os eleitos fossem alcançados pela verdade, sem a qual todos estariam irremediavemente condenados e proscritos ao fogo do inferno. Então, o que temos aqui é a proclamação do Evangelho para eleitos e réprobos, judeus e gentios, deixando claro que, nesse aspecto, o da pregação, Deus não faz também acepção de pessoas, e todas estão no mesmo nível de igualdade.
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