domingo, 9 de janeiro de 2011

Sementes de mostarda. Em meio a divisões étnicas e religiosas, cristãos sudaneses lutam para pacificar um país traumatizado pela guerra.

Por Isaac Phiri
Gangura, uma aldeia próxima da cidade de Yambio, a apenas seis quilômetros da fronteira do Sudão com o Congo, é um território dominado pelo Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês). O grupo é uma pequena e brutal milícia de resistência que luta para derrubar o governo local. O sul do país é um território sem lei. Saques, depredações, seqüestros, estupros e massacres são rotina ali.  Valas comuns abrigam os restos mortais das vítimas, próximas às aldeias encravadas na vegetação espessa. A violência é generalizada, e grupos rebeldes e milícias tribais são, em grande parte, os culpados.
O Sudão, maior nação da África em extensão territorial, está conflagrado há muito tempo. Vinte um anos de guerra civil deixaram dois milhões de mortos, quatro milhões de desalojados e um país dividido étnica, cultural e religiosamente. O norte, de maioria árabe e muçulmana, é bem diferente do sul, cuja população é negra e fracionada em diferentes povos, muitos deles cristãos. Um acordo de paz firmado em 2005 deu uma trégua no conflito, mas apenas oficialmente, já que as disputas locais não acabaram. “O acordo pôs fim a uma guerra devastadora. Esta é a boa notícia”, celebra Richard Williamson, enviado especial do governo americano ao Sudão, para em seguida observar: “A má notícia é que temos hoje uma paz imperfeita”.
Contudo, uma pequena semente de paz, do tamanho de um grão de mostarda – para usar a célebre citação bíblica – está germinando em solo sudanês. A Igreja tem promovido a pacificação a seu próprio modo, mantendo a sua missão com o povo da terra. Nos últimos meses, Christianity Today viajou centenas de milhas através do sul do Sudão, visitando Juba, Yambio e algumas aldeias distantes. Não foi difícil encontrar lideres cristãos apaixonados que abrem mão de sua segurança pessoal para construir o Reino de Deus e trabalhar por um Sudão mais unificado.
Um deles é o alto e magro James Lual Atak. Anos atrás, como um refugiado e soldado-mirim, Atak foi um dos 27 mil chamados Meninos Perdidos, separados de seus pais durante os anos de guerra para lutar por motivos que eles mesmos eram incapazes de compreender. Hoje, ele é um pastor, fundador do New Lives Ministries (Ministério Vidas Novas), na distante aldeia de Nyamlell, Estado de Bahr el-Ghazal. Atak levanta as mãos acima de sua cabeça para proteger seus olhos do sol ardente enquanto observa o carregamento de 1,6 tonelada de material médico. Os suprimentos foram trazidos de Nairóbi, capital do vizinho Quênia, e serão levados pelo restante do caminho em um outro avião para o vilarejo de Atak. Os suprimentos serão estocados nas prateleiras da clínica médica construída recentemente pela entidade cristã que dirige. O complexo já inclui uma escola, um templo e vários dormitórios.
Debaixo das árvores – Quando Atak fundou oVidas Novas, em maio de 2002, ele estava sozinho para cuidar e educar 153 crianças. Não havia construção alguma naquele tempo, só árvores. A cada dia, o pastor tinha que dividir as crianças em três grupos e colocar cada um embaixo de uma árvore diferente. Ele pegava um grupo e começava a ensiná-los a contar números; então, corria para a sombra de outra árvore, na tarde de sol quente, para ensinar as crianças a recitar o alfabeto até que elas aprendessem – e, em seguida, ia para a terceira árvore e ensinava canções com conteúdo bíblico à garotada.
Depois de aterrissar com os suprimentos médicos em Nyamlell, James Atak orgulhosamente apresenta seus dois novos dormitórios. Numa paisagem de tons marrons e beges, terra, árvores e barracas, brilham as paredes brancas do dormitório, onde o telhado ondulado surge como um farol. O vilarejo inteiro parece girar em torno do complexo do Vidas Novas. As crianças do orfanato, agora aproximadamente 400, correm ao encontro do religioso logo que o vêem.
O destino de Nyamlell poderia ter sido diferente se Atak tivesse aceitado o bilhete dourado para refugiados se estabelecerem nos Estados Unidos. Ele e aproximadamente outros 3.800 jovens sudaneses que haviam sobrevivido à guerra receberam a oferta de um bilhete só de ida num avião com destino à América. Depois de muita oração, ele rejeitou o convite; estava decidido a fazer alguma coisa por sua gente. Mais tarde, graduou-se numa faculdade bíblica no Quênia e voltou e para a sua aldeia. Por um grande milagre, descobriu que seus pais ainda estavam vivos.
Usando um terreno doado, Atak deu início ao seu ministério pregando debaixo de uma árvore. Aos poucos, foi ganhando a confiança de muitos órfãos, aos quais ofereceu um lar. Ele admite haver questionado sua decisão de permanecer na África por duas vezes. “Mas nós podemos ser felizes onde estamos, longe ou perto, contanto que tenhamos a Cristo”, diz, resoluto. Em pouco tempo, os habitantes locais preencheram todos os postos de trabalho do Vidas Novas. Atak tornou o ministério indígena a prioridade máxima para mostrar aos jovens órfãos novas maneiras de dar moradia, alimentação e educação uns aos outros na aldeia.
“Kit tiroteio” – No sudeste de Nyamlell, no sul do país, está a cidade de Juba, sede do Movimento para Libertação dos Povos do Sudão, que ocupou a linha de frente no combate às forças do governo. É um retrato dos efeitos de uma guerra em nações miseráveis – faltam água, eletricidade, comida e serviços básicos de saúde. O aeroporto internacional virou terminal rodoviário e muitas famílias desabrigadas amontoam-se em casas devastadas, outrora luxuosas. Atualmente, Juba tem cerca de 250 mil moradores, mas este número cresce rapidamente.  Habitação é um problema crítico devido aos milhares de sulistas que retornam do exílio em Cartum, a capital do país.
Não há hotéis em condições de funcionamento, por isso os visitantes são acomodados em casamatas pré-fabricadas. Em cada alojamento, é possível encontrar um kit que inclui instruções sobre como proceder em caso de tiroteio. “Mantenha a calma. Fique abaixado. Se possível, corra para a sala de segurança”, diz o texto. Dentro da tal sala, sem janelas e normalmente utilizada como cozinha, há um telefone para chamadas de socorro para os pacifistas armados.
Em Juba, fica a única estação de radio cristã em todo o Sudão. A estação funciona em dois contêineres fortificados com concreto e cobertos por um telhado de zinco. Ali trabalha a mexicana Cecília Sierra Salcido. De compleição física frágil, ela é uma evangelista zelosa e pertence à ordem religiosa Missionários Combonianos do Coração de Jesus, assim chamada em homenagem a Daniel Comboni, padre italiano que atuou como missionário na região na segunda metade do século 19.  A ordem fundada por Comboni resume suas estratégias no slogan “Salve a África através da África”. A idéia é motivar as igrejas africanas a formar obreiros para trabalhar no próprio continente.
Vestida com um traje branco-neve a despeito da poeira de Juba, Cecília é diretora da Radio Bakhita, que iniciou suas transmissões na véspera do Natal de 2006 apresentando músicas natalinas e mensagens de líderes católicos e anglicanos. A estação de rádio recebeu o nome de Josephine Bakhita, uma sudanesa que foi escrava durante a maior parte de sua vida. Após décadas de sofrimento, Bakhita uniu-se às irmãs Canossian na Itália e ajudou a preparar missionários ocidentais para a África. A emissora é a primeira de uma sonhada rede de sete estações a serem espalhadas pelo sul do Sudão e pelas montanhas Nuba.
A Bakhita transmite 14 horas diárias, principalmente em inglês e árabe, mas também em dialetos locais, e tem uma audiência potencial de 500 mil ouvintes. Os programas incluem temas dirigidos a mulheres e jovens, ensino religioso para membros de igrejas e assuntos sobre reconciliação e crescimento. “Quanto ponho nossos programas no ar, sei que uma mensagem, uma palavra, podem atingir diretamente o público”, diz Cecília. “Eu sinto a responsabilidade e o poder que repousam sobre o processamento e a transmissão da programação diária, ao apertar o botão e deixar a mensagem ir”. Para ela, a Rádio Bakhita tem a missão de reforçar o processo de reconciliação, desenvolvimento e construção da paz.
Retomada – A paz, contudo, ainda é algo distante do cotidiano dos habitantes do sul. Ao longo das fronteiras, milícias violentas vivem às custas do extrativismo e de letais ataques repentinos, praticamente à vontade. Viajar pelas estradas, que não são pavimentadas, é uma tarefa penosa e perigosa. No entorno de Juba, tudo que se vê é uma terra virgem. A cidade mais próxima é Yambio, onde vive o povo azande. O chefe da tribo, um homem de cerca de 30 anos, pede para não ser identificado. Cristão, ele se queixa de que o povo do sul é tratado como “gente de segunda classe”: “O governo central quer que todos sejam muçulmanos”, denuncia.
Segundo ele, o acordo de paz de 2005 foi benéfico para todos, mas o processo ainda é precário. “Nossa paz ainda é frágil, assim como um pedaço de vidro ou um ovo”, diz. “O povo ainda não experimentou o fruto da paz”. Uma perspectiva para melhorar as condições de vida na região é a receita oriunda da exploração do petróleo da região de Abyei, que fica exatamente entre as duas partes do país. “Nós não estamos dividindo o dinheiro do petróleo – esta política é financeira”, protesta o líder. “Estamos orando muito”, resigna-se.
Há uma nova realidade para os cristãos sudaneses: a ainda precária paz mudou firmemente o Cristianismo para um período pós-missionário, pós-colonial. Por décadas, o sul do Sudão foi descrito como “cristão e animista”, uma referência à histórica atividade missionária cristã e o espiritualismo indígena. Hoje, as igrejas indígenas, com a maior parte dos pastores sudaneses negros, estão em toda parte. Seis grupos protestantes atuam no distrito de Yambio, e aproveitam o momento de calma para se concentrarem no fortalecimento espiritual das comunidades, na reconstrução dos templos e nos ministérios junto às famílias.
Os primeiros anos foram promissores. “Um governo foi formado e havia uma ordem”, diz Nicholas Kumba, pastor da Igreja Evangélica Luterana local. O povo sudanês do sul que havia fugido para países vizinhos – Congo, Uganda, República Centro-Africana, Quênia e Etiópia – começou a retornar. A frequência nas igrejas aumentou e as visitas pastorais às aldeias, que antes eram uma verdadeira aventura, tornaram-se menos arriscadas. Todavia, o progresso não chegou. Os serviços de saúde e de educação continuaram carentes e a pobreza permanecia. “Algumas coisas foram resgatadas, outras, não”, diz Kumba.
Unificação X divisão – Uma coisa que o governo do sul do Sudão luta para oferecer é segurança. É difícil pensar em qualquer lugar seguro nos dez estados que compõem a região. As ameaças surgem de muitos lados: soldados indisciplinados, rivalidades entre clãs e tribos e um banditismo bárbaro, resultante de anos de guerra. Em Yambio, a maior ameaça é o Exército de Libertação do Senhor, cuja brutalidade está acima de qualquer crueldade. O bispo anglicano de Torit, a capital do Estado de Equatoria, Bernard Balmoi, lembra de um incidente grotesco em sua diocese, onde o LRA matou várias pessoas e obrigou seus parentes a cozinhar e comer os corpos. Estes incríveis relatos têm efeito aterrorizante sobre centenas de aldeias sudanesas ao longo de todos os mais de 800 quilômetros fronteira do sul.
Ano passado, a Igreja Episcopal do Sudão, a maior e mais influente denominação protestante do país, hospedou uma conferência em Juba que se concentrou especificamente na questão dos pastores. No encontro, os relatórios de campo através do país eram alarmantes. A tensão entre muçulmanos e cristãos permanece muito elevada. Por exemplo, uma parte consideravelmente grande do cemitério cristão em Cartum havia sido tomada pelos muçulmanos para vender carros. Outras preocupações incluem rivalidades tribais, confrontos sangrentos entre criadores de gado e fazendeiros e um doloroso conflito por terras. A exploração de petróleo também é um grande problema. Aldeões perderam propriedades, abrigo e terras. Um analista da Visão Mundial resume os desafios do Sudão em três palavras: poder, riqueza e segurança. O país tem que resolver como o poder e a riqueza devem ser distribuídos. Ambos estão diretamente ligados à segurança.
Entretanto, o relógio marca a chegada do referendo de 2011 para decidir se o sul do Sudão deve separar-se do norte. Mesmo entre os líderes de igrejas, esta questão é controversa. Para o arcebispo de Juba, Daniel Deng Bul, a independência do sul é a conclusão de um processo iniciado em 1956, quando o país tornou-se independente do Reino Unido. Mas o bispo anglicano de Cartum, Ezekiel Kondo, é totalmente contra a divisão. Sua preocupação é de que, se o sul de maioria cristã se separar, a Igreja do norte, espremida numa sociedade muçulmana, vai desaparecer ao longo do tempo. “Eu sinto que a unidade do Sudão deveria ser uma causa defendida pela Igreja. Jesus mesmo veio para unir, não para dividir”, sentencia.
Em sua declaração final, intitulada Vamos mudar da guerra para a paz, os dirigentes cristãos reunidos em Juba afirmaram que a Igreja não tem fronteiras. “Nós nos comprometemos a unir a Igreja do Sudão, quer seja em um ou em dois países”, destaca o documento. Entre outros 53 ponto, a conferência elencou ações específicas que os cristãos sudaneses deveriam adotar como modelo de reconciliação, como questões acerca de tribalismo, desarmamento, exploração de petróleo, refugiados, uso sustentável da terra, aconselhamento para traumas pós-guerra, harmonia étnica e união das igrejas.
O caminho a percorrer é árduo, mas iniciativas como a da Rádio Bakihta e do Ministério Vidas Novas apontam para a possibilidade de a fé cristã exercer papel fundamental no processo de pacificação do país. O pastor James Lual Atak sintetiza a idéia: “Eu sou apenas um homem a quem Deus usa para abençoar a muitos outros” – exatamente como a semente de mostarda que desabrocha em algo exuberante e belo.

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