"Não existe projeto que prevê a cura gay. Isso é uma fantasia do
jornalismo militante.", afirma o colunista Reinaldo Azevedo da revista
Veja.
Confira abaixo a íntegra do comentário de Reinaldo Azevedo:
Você lerá que comissão aprovou “projeto de cura gay”. É uma falsa notícia e aqui se explica por quê
Nem
tudo se resume à minoria na rua. Há outros assuntos em pauta no país. O
blog recebeu ontem quase 300 mil visitas. É provável que alguns novos
leitores acabem tomando gosto pela página. Nem todos conhecem os debates
travados aqui. Pois bem: nos jornais desta quarta, vocês encontrarão o
que já está nos sites e portais. Algo mais ou menos assim: “Comissão de
Feliciano aprova projeto da cura gay”. É mentira dupla! Em primeiro
lugar, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara não pertence
ao deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Em segundo lugar, não existe
projeto que prevê a cura gay. Isso é uma fantasia do jornalismo
militante. Semelhante àquela que sustenta que o Estatuto do Nascituro é
“Bolsa Estupro”. Tenho 51 anos. Quando eu tinha 20 e poucos, 30 e poucos
e, acreditem, até 40 e poucos, era proibido fazer militância política
em redação. Cada um que tivesse as suas convicções, mas o compromisso
tinha de ser com o fato, segundo valores, a saber: defesa da democracia,
do estado de direito, da economia de mercado. Era proibido, por
exemplo, mentir , simplificar ou trapacear em nome do bem da humanidade.
Jornalista reporta o que vê — e alguns opinam. Mas sem inventar o que
não existe num caso ou noutro.
Ao fato mais recente: a Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara aprovou um Projeto de Decreto
Legislativo, do deputado João Campos (PSDB-GO), que susta dois trechos
de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia. O texto ainda tem de
passar pelas comissões de Seguridade Social e de Constituição e
Justiça. Se alguém não conhece detalhes do debate — geralmente ignorados
porque fica mais fácil fazer proselitismo onde há ignorância,
especialmente a bem intencionada — explico tudo abaixo, nos mínimos
detalhes, conforme fiz, por exemplo, no dia 2 de maio. Vamos ver.
O
Projeto de Decreto Legislativo 234/11 torna sem efeito o trecho do
Artigo 3º e todo o Artigo 4º da Resolução 1/99 do Conselho Federal de
Psicologia.
Então vamos aos documentos. A íntegra do Projeto de
Decreto Legislativo está aqui, com a justificativa. Reproduzo a parte
propositiva em azul.
Art. 1º Este Decreto Legislativo susta o
parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal
de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999.
Art. 2º Fica sustada a
aplicação do Parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do
Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que
estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da
orientação sexual.
Art. 3º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
Então
é preciso fazer o que virou raridade nas redações quando os lobbies “do
bem” ditam a pauta; saber, afinal, que diabo dizem os trechos que
seriam sustados.
“Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação
que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas
nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para
tratamentos não solicitados.”
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art.
4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de
pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a
reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais
como portadores de qualquer desordem psíquica.
Comento
Atenção!
A proposta de Decreto Legislativo não toca no caput do Artigo 3º. Ele
seria mantido intocado. Como deixa claro o projeto do deputado, seriam
suprimidos apenas o Parágrafo Único do Artigo 3º e o Artigo 4º. Como se
nota, ao suprimir esses dois trechos da Resolução 1/99, o Projeto de
Decreto Legislativo não passa a tratar a homossexualidade como uma
doença. É mentira! Também não autoriza a “cura gay”. É outra mentira!
São distorções absurdas!
Fato, não militância
Procederei a
algumas considerações prévias, até que chegue ao cerne da questão.
Avalio que a homossexualidade não tem cura pela simples razão de que não
a considero uma doença. E nisso concordo com a OMS (Organização Mundial
de Saúde) e com o Conselho Federal de Psicologia. Assim, não acredito
em terapias que possam converter héteros em gays ou gays em héteros (não
se tem notícia de que alguém tenha buscado tal conversão). Mais:
sexualidade não é uma opção — se fosse, a esmagadora maioria escolheria o
caminho da maior aceitação social, e, nessa hipótese, as escolhas
poderiam até ir mudando ao longo do tempo, à medida que determinadas
práticas passassem a ser mais aceitas ou menos.
Há quem só goste
de um brinquedo; há quem só goste do outro; e há quem goste dos dois.
Essa minha opinião não é nova — o arquivo está aí. Os espadachins da
reputação alheia, como escreveu Balzac, fazem questão de ignorá-la
porque gostam de inventar inimigos imaginários para posar de mártires.
Muito bem. Até aqui, não haveria por que os gays — ou o que chamo
“sindicalismo gay” — estrilar. Mas é evidente que não pensamos a mesma
coisa. Entre outras divergências, está o tal PLC 122 que criminaliza a
chamada “homofobia”. Trata-se de um delírio autoritário. Já escrevi
muito a respeito e não entrarei em detalhes agora para não desviar o
foco.
Vamos lá. Desde 22 de março de 1999, está em vigência a tal
Resolução 1 (íntegra aqui), que cria óbices à atuação de psicólogos na
relação com pacientes gays. Traz uma porção de “considerandos”, com os
quais concordo (em azul), e depois as resoluções propriamente. Listo os
ditos-cujos:
CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;
CONSIDERANDO
que na prática profissional, independentemente da área em que esteja
atuando, o psicólogo é frequentemente interpelado por questões ligadas à
sexualidade;
CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua
sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser
compreendida na sua totalidade;
CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão;
CONSIDERANDO
que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais
desviantes da norma estabelecida sócio-culturalmente;
CONSIDERANDO
que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o
esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação
de preconceitos e discriminações
Aí vem o conteúdo da resolução. O caput do Artigo 3º, com o qual ninguém mexe, é correto. Reproduzo:
“Art.
3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a
patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão
ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não
solicitados.”
Está claro, então, que os psicólogos não atuarão para
favorecer a patologização da homossexualidade nem efetuarão tratamentos
coercitivos. E a parte que cairia? Pois é…Transcrevo outra vez (em
vermelho e em destaque):
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art.
4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de
pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a
reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais
como portadores de qualquer desordem psíquica.
Têm de cair mesmo!
Qual
é o principal problema desses óbices? Cria-se um “padrão” não definido
na relação entre o psicólogo e a homossexualidade. Esses dois trechos
são tão estupidamente subjetivos que se torna possível enquadrar um
profissional — e puni-lo — com base no simples achismo, na mera opinião
de um eventual adversário. Abrem-se as portas para a caça às bruxas.
Digam-me cá: um psicólogo que resolvesse, sei lá, recomendar a
abstinência sexual a um compulsivo (homo ou hétero) como forma de
livrá-lo da infelicidade — já que as compulsões, segundo sei, tornam
infelizes as pessoas —, poderia ou não ser enquadrado nesse texto? Um
adversário intelectual não poderia acusá-lo de estar propondo “a cura”?
Podemos ir mais longe: não se conhecem — ou o Conselho Federal já
descobriu e não contou pra ninguém? — as causas da homossexualidade. Se
um profissional chega a uma determinada terapia que homossexuais,
voluntariamente, queiram experimentar, será o conselho a impedir? Com
base em que evidência científica?
Há uma diferença entre
“verdade” e “consenso da maioria influente”. Ademais, parece-me evidente
que proibir um profissional de emitir uma opinião valorativa constitui
uma óbvia infração constitucional. Questões ligadas a comportamento não
são um teorema de Pitágoras. Quem é que tem o “a²= b²+c²” da
homossexualidade? A resolução é obviamente autoritária e própria de um
tempo em que se impõe a censura em nome do bem.
Ora, imaginem se
um conselho de “físicos” ousaria impedir os cientistas de tentar
contestar a relatividade. O que vai ali não é postura científica, mas
ideologia. Se conceitos com sólida reputação de verdade, testados
empiricamente, podem ser submetidos a um teste de estresse intelectual,
por que não considerações que dizem respeito a valores humanos? Tenham
paciência! O fato de eu não endossar determinadas hipóteses ou
especulações não me dá o direito de proibir quem queira fazê-lo.
Fiz
uma pesquisa antes de escrever esse texto. Não encontrei evidências de
resolução parecida em nenhum lugar do mundo. O governo da Califórnia,
nos EUA, proibiu a terapia forçada de “cura” da homossexualidade em
adolescentes. É coisa muito diferente do que fez o conselho no Brasil.
Países que prezam a liberdade de expressão e que não querem usar o
discurso da liberdade para solapar a própria liberdade não se dão a
desfrutes dessa natureza.
Então vamos lá. Eu não estou defendendo
terapias de cura da homossexualidade. Eu não acredito que haja cura
para o que não vejo como doença. Também não acho que estamos no universo
das escolhas. Dito isso, parece-me uma suma arrogância que um conselho
profissional interfira nessa medida na atividade clínica dos
profissionais e, atenção!, dos pacientes também! Assim, no mérito, não
vejo nada de despropositado na proposta do deputado João Campos. Ao
contrário: acho que ela derruba o que há de obviamente autoritário e,
entendo, inconstitucional na resolução porque decidiu invadir também o
território da liberdade de expressão, garantido pelo Artigo V da
Constituição.
É preciso saber ler.
Proponho aqui um
exercício aos meus colegas jornalistas. Imaginem um Conselho Federal de
Jornalismo que emitisse a seguinte resolução, com poder para cassar o
seu registro profissional:
“Os jornalistas não colaborarão com eventos e serviços que proponham qualquer forma de discriminação social”.
“Os
jornalistas não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos
públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os
preconceitos contra pobres, negros, homossexuais, índios, mulheres,
portadores de necessidades especiais, idosos, movimentos sociais e
trabalhadores”
O idiota profissional diria: “Ah, está muito bem
para mim! Eu não faria nada disso mesmo!”. Não, bobalhão, está tudo
errado! Você se entregaria a uma “corte” de juízes que definiria, por
sua própria conta, o que seria e o que não seria preconceito. Entendeu
ou preciso pegar na mãozinha para ajudar a fazer o desenho? O problema
daquele Parágrafo Único do Artigo 3º e do Artigo 4º é o subjetivismo.
Ninguém pode ser obrigado, não numa democracia, a se submeter a um
tribunal que pode dar a sentença máxima com base nos… próprios
preconceitos.
Nem nos seus delírios mais autoritários ocorreria a
um conselho profissional nos EUA, por exemplo, interferir dessa maneira
na relação do psicólogo com o seu paciente. Uma coisa é afirmar, e está
correto, que a homossexualidade não é doença; outra, distinta, é querer
impedir que o profissional e quem o procura estabeleçam uma relação
terapêutica que pode, sei lá, disciplinar um comportamento sexual sem
que isso seja, necessariamente, uma “cura”.
Os tais trechos da
resolução, entendo, são mesmo autoritários e inconstitucionais. E têm de
cair. E o que parece, isto sim, não ter cura é a vocação de amplos
setores da imprensa para a distorção. Cada vez mais, a notícia se
transforma num instrumento para privilegiar “os bons” e satanizar “os
maus”. Isso é militância política, não jornalismo.
Por Reinaldo Azevedo
Fonte: Veja.com
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