Cena um: uma das mais importantes revistas semanais do país publicou recentemente uma extensa reportagem fazendo projeções sobre o futuro do Brasil. Apesar de tratar de diversos temas, da educação à economia, a notícia que realmente caiu como uma bomba e acabou repercutida pela imprensa, por emissoras de rádio e de televisão e por blogs e sites de discussão na internet dizia respeito à religião: o maior país católico do mundo na atualidade se tornará
evangélico em poucos anos. Mais precisamente em 2020, a continuarem as impressionantes taxas de crescimento, mais da metade dos brasileiros pertencerá a alguma
igreja protestante. Estima-se que já neste mês de dezembro, o número de
evangélicos no Brasil chegue próximo dos 50 milhões e, pouco mais de uma década depois, atinja a marca de 105 milhões de pessoas.
Cena dois: após realizarem uma investigação que durou mais de dois anos, promotores do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, acusaram o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, e mais nove pessoas ligadas à denominação, pelo desvio de 8 bilhões de reais de dízimos e contribuições ofertadas por fieis. A dinheirama não teria sido usada em atividades religiosas, mas para aumentar patrimônio pessoal e conseguir lucro, com a -compra de duas emissoras de televisão, terrenos, mansões, um prédio e até um caríssimo jatinho modelo Cessna. A Justiça deu prazo para a defesa se pronunciar e pode aceitar a denúncia. Se assim for, Macedo e seu grupo tornam-se réus num processo criminal que pode condená-los por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Ao mesmo tempo em que os
evangélicos crescem numericamente e aumentam de forma considerável sua influência em todas as esferas da vida nacional, escândalos e denúncias envolvendo dinheiro, sexo e abuso de poder multiplicam-se e maculam a imagem das
igrejas e de seus líderes. Fala-se em relativização moral e secularização da fé. Em uma geração de crentes que busquem vantagens e não mais a Deus. Em que pese o fato de que por trás das últimas denúncias envolvendo a Universal exista uma guerra de interesses e de cifras na qual estão os principais grupos de comunicação do país, ou mesmo que esteja em curso uma batalha espiritual contra a expansão do Reino de Deus, as críticas e acusações sobre o que acontece nos templos de Norte a Sul do país são tão sérias que, ignorá-las, seria mesmo anti-bíblico. Na esteira do avanço
protestante em terras tupiniquins, estudiosos das ciências da religião costumam avaliar que esse fenômeno pode ser muito bom, uma vez que “os
evangélicos não vão apenas mudar a sociedade, mas mudarão com ela”. Tal afirmação tem causado arrepios em pastores e trazido um sério questionamento para os cristãos: diante de tal quadro já hoje: afinal, como será esse Brasil
evangélico de 2020?
Se o questionamento daqueles que não aceitam o crescimento
protestante passou a ser de ordem ética e moral, citando inclusive a própria Palavra de Deus que, segundo eles, só é usada para manipular os incautos, a Universal do Reino de Deus é a vidraça da vez. De acordo com a denúncia do Ministério Público, boa parte do dinheiro recebido pela
igreja era repassada em forma de “pagamentos” para empresas de fachada controladas por pessoas ligadas à cúpula da organização. Duas delas, a Cremo Empreendimentos e a Unimetro Empreendimentos receberam, entre 2004 e 2005, mais de 70 milhões de reais, embora não tenham oferecido nenhum serviço ou produto, segundo a Secretaria da Fazenda de São Paulo.
Essas empresas enviariam o dinheiro para outras, sediadas em paraísos fiscais. Tanto a Investholding, nas Ilhas Cayman, quanto a CableInvest, nas Ilhas do Canal, Reino Unido, também pertencem a pessoas supostamente ligadas à
igreja. Por fim, o dinheiro retornava ao país como empréstimos para os líderes eclesiásticos, que compravam com eles apartamentos em condomínios de luxo nos Estados Unidos e propriedades no Brasil, como uma mansão de 2 mil metros quadrados em Campos do Jordão (SP), no valor de 6 milhões de reais.
A denúncia do Gaeco não é propriamente uma novidade. Desde 1992, quando a Universal comprou a Rede Record, houve mais de dez processos contra a
igreja. Já em 1995, depois que Macedo apareceu em um vídeo ensinando pastores a tirar ofertas, autoridades fazem varreduras nas contas da organização, mas não conseguem provas. “A tese de que pastores tenham pegado dinheiro de ofertas, mandado para o exterior e financiado recursos para enriquecer, não é nova. Em 1993, houve denúncia apócrifa e, de lá para cá, a Polícia Federal, a Interpol, o FBI, a Receita Federal e, finalmente, o Supremo Tribunal Federal concluíram que as denúncias não tinham fundamento e inocentaram os acusados. Também essa denúncia não será aceita, pois trata-se de calúnia, injúria e infâmia”, afirmou em pronunciamento o senador Marcello Crivela (PRB/RJ), bispo licenciado da
igreja. A principal reclamação de Crivella e da Universal é que alguns dos maiores veículos da mídia nacional estejam aproveitando a investigação do Ministério Público para criar um factóide e, com isso, lutar contra o crescimento de audiência da TV Record. Dentre aqueles que deram mais publicidade ao caso estão o jornal Folha de S. Paulo, que há dois anos enfrentou uma enxurrada de processos judiciais movidos por fiéis da
igreja por conta de uma reportagem sobre as finanças da denominação, e a Rede Globo, principal interessada na guerra de audiência. Mas se a motivação é questionável, os veículos garantem que as acusações procedem. Apesar das afirmações de independência da emissora, somente no ano passado a Universal teria repassado 400 milhões de reais para a Record. O valor entra com a compra de horários nas madrugadas, o que é perfeitamente legal. O problema é que enquanto a Globo fatura 50 mil reais, com 6 pontos no ibope, a Record, com audiência bem menor, cerca de 1,4 ponto, recebe mais de 200 mil por hora. Tudo da
igreja, tudo bem acima dos valores de mercado.
Evangelho da prosperidade
Assim como a Record, com suas 23 emissoras de TV, 42 emissoras de rádio e várias outras empresas, a Universal também é seu modo uma potência. Em 32 anos, a
igreja tornou-se a terceira maior denominação no Brasil, atrás apenas da Igreja Católica e da Assembléia de Deus. Afirma congregar 8 milhões de pessoas em seus 4500 templos espalhados pelo país. Além daqui, está presente em outras 171 nações e tem em seu corpo ministerial 9600 pastores e outros 4400 obreiros voluntários. Seu trabalho social e espiritual é digno de nota, uma vez que oferece a Palavra de Deus e mensagens de encorajamento para gente de todas as origens e classes econômicas, sendo uma porta de entrada para o Evangelho e para a libertação de multidões afundadas em vícios, criminalidade e falta de perspectivas na vida. É perfeitamente coerente e razoável que, como qualquer outra
igreja – inclusive a Católica – ou religião, possa empregar os meios de comunicação, recursos e estrutura na tarefa evangelística. Mas a verdade é que o centro da crise não está aí e também não se restringe somente à Universal.
O espantoso crescimento
evangélico nas últimas décadas já provoca uma crise de valores e de doutrinas em várias
igrejas. O novo crente adotou regras menos rígidas e passou a procurar a religião não apenas como forma de obter benesses na eternidade, mas alcançar a prosperidade aqui e agora. E nada representa mais esse novo momento do que a Teologia da Prosperidade. Surgida por volta de 1940, nos Estados Unidos, ela radicaliza o ensino de que o sacrifício de Cristo deu àqueles que o seguem direito a uma saúde perfeita, riquezas materiais, triunfo sobre o Diabo e vitória sobre todo e qualquer sofrimento (conheça mais essa história na reportagem Teologia do Abracadra à página 47). Basta decretar ou determinar e colocar a fé em ação. “Para bancar suas ambições institucionais, proselitistas e econômicas, as
igrejas atrelam a doação financeira à retribuição divina de bênçãos materiais. Cada culto procura convencer o fiel a firmar relações de troca com o Criador e comprovar a fé dando dinheiro. Quando a Universal começou a usar tais métodos, eles pareceram polêmicos e heterodoxos, mas agora os líderes de outras denominações perceberam a eficiência dessas práticas e, para adquirir vantagens competitivas, copiam todas elas”, explica o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC do Rio Grande do Sul, autor do livro Neopentecostais (Edições Loyola).
Copiar não é força de expressão nem se resume à nova visão em relação ao dinheiro. Depois do sucesso da Fogueira Santa de Israel, do Vale do Sal e das rosas ungidas, fazer campanhas passou a ser algo praticamente obrigatório em todo meio
neopentecostal e em parte do pentecostalismo clássico. Diante da renovada pressão por exposição midiática e crescimento, algumas
igrejas históricas que adotaram a renovação carismática passam a rever a forma e o conteúdo de suas mensagens e deixam em polvorosa os mais tradicionais. Como tantos outros modismos, substituem a ênfase na santidade e no relacionamento com Deus pelo emocionalismo desprovido de mudança de vida e baseado na política do “toma lá, dá cá”.
“Estamos vivendo uma espécie de ‘síndrome de Éfeso’. Como no caso dos crentes que viviam naquela cidade nos tempos bíblicos, as pessoas correm atrás de novidades. Por outro lado, passou a ser inconveniente e fora de propósito falar em ‘sofrer por amor ao Evangelho’, ‘entregar tudo a Deus’ e ‘buscar em primeiro lugar os valores do Reino’. O único sacrifício válido é o financeiro. Infelizmente, pouco há em comum entre essas novas
igrejas e a Reforma Protestante que deu origem aos movimento
evangélico”, lembra o professor Lourenço Stelio Rega, diretor da Faculdade Teológica de São Paulo e especialista em Ética. Nessa nova realidade do meio religioso brasileiro, textos bíblicos tradicionais ganham novas interpretações, nas quais um Deus visto apenas como Senhor e Salvador já não atende à demanda dos fieis. Antes de mais nada, ele é um negociador e os líderes eclesiásticos, seus despachantes. Ai de quem bobear nessa tarefa: a concorrência é cada vez maior.
Um quadro vívido de como anda o movimento
evangélico pode ser encontrado na periferia das grandes cidades. Nesses locais, proliferam
igrejas, a maior parte congregações independentes, com templos quase vizinhos. Em São Paulo, a Avenida Celso Garcia, ´no Brás, uma das vias mais tradicionais da metrópole, passou a ser conhecida como “avenida da fé”. Em uma cidade onde um novo templo é aberto a cada dois dias, a Celso Garcia ganhou pelo menos nove novas
igrejas nos últimos tempos, algumas com templos enormes e suntuosos, separados por poucos metros. E se antigamente as
igrejas transformavam cinemas em lugares de culto, hoje supermercados e lanchonetes da rede Mc Donald’s são adaptados para funcionarem como templos. “É o fast food da religião. Como a concorrência é enorme, cada um tenta vender melhor seu peixe. Só falta pendurar uma faixa na entrada proclamando: ‘Esta
igreja funciona. Sabemos como fazer Deus trabalhar para você’. Isso, a teologia já não explica mais. Procurar recompensa pelo menor preço é coisa para a economia clássica. Pior é que não há diferenciação: todos são vistos como
evangélicos”, completa Rega.
Na ponta do lápis
Há quem veja o fenômeno do crescimento
evangélico como um avivamento. Outros não aceitam tal interpretação, afinal, para um avivamento não basta o aumento quantitativo, é preciso também o qualitativo. De um jeito ou de outro, o fato é que o Brasil caminha a passos largos para se tornar em um futuro bem próximo uma nação de maioria
evangélica. Percurso inverso ao da Europa, que abandonou o cristianismo e agora corre sério risco de se tornar um continente islâmico (leia matéria à página 48). Nesse exercício, não há nada de adivinhação, vontade ou futurologia. É questão de fazer cálculos. “A continuar a taxa de crescimento que os
evangélicos tiveram nas últimas décadas, no final deste ano, 25,4% de um total de 196,5 milhões de brasileiros, ou seja, quase 50 milhões serão
evangélicos. Já em 2020, metade da população será
protestante”, observa a matemática e crente presbiteriana Eunice Stutz Zillner, do Ministério Apoio com Informação (MAI), responsável por análises e projeções no campo religioso.
Apesar da fé ser a motivação para o trabalho – ela e o marido, o engenheiro eletrônico Marcos Zillner, são missionários e pretendem que os números incomodem e estimulem as
igrejas a evangelizar –, nada de ser tendencioso ou enveredar pela empolgação dos líderes denominacionais e seus números “evangelásticos”. As contas, literalmente, são feitas na ponta do lápis. As projeções do MAI têm como ponto de partida os censos periódicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pelo levantamento de 1991, por exemplo, sabe-se que os
evangélicos eram 13 milhões na época ou 8,9% da população brasileira. Nove anos depois, em 2000, os
evangélicos dobraram de tamanho e passaram a ser 26,1 milhões, 15,45%. “Tudo bem que a tendência mais para frente é que esse aumento venha a se estabilizar. Mas levando em conta a taxa de crescimento anual dos
evangélicos, que é mais de três vezes o da população do país, podemos dizer que hoje um em cada quatro brasileiros é
protestante”, confirma Eunice. Nesse contexto, todos crescem, mesmo os históricos. Mas sobretudo as denominações neopentecostais.
Uma quantidade tão expressiva de pessoas transformadas pela Palavra de Deus leva a crer que haverá um forte impacto na sociedade brasileira, certo? Errado. Pelo menos, segundo os especialistas ouvidos pela semanal Época, a revista que fez inicialmente a projeção sobre o futuro do país. Para a antropóloga Christina Vital, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a flexibilidade e a adoção de regras menos rígidas é a razão do exponencial crescimento
evangélico. “Enquanto os católicos não aceitam coisas como a camisinha, os
evangélicos adaptam-se aos costumes da sociedade. Há
igrejas que aceitam gays, por exemplo. Essa tendência deve continuar”, prevê ela.
A potencialidade numérica também não garantirá que um presidente
evangélico seja eleito, já que tradicionalmente a representação política no Congresso fica bem aquém da porcentagem de crentes na população. O Brasil também será muito diferente dos Estados Unidos, onde a moral conservadora é parte essencial da crença e do culto. “A religião foi abrasileirada. Não tem um foco tão grande no moralismo”, analisa o antropólogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Continuando, os especialistas acreditam que o aumento da população
protestante levará ainda à diminuição do consumo de álcool, com a oposição costumeira dos crentes, e ao aumento da escolaridade, já que as crianças são incentivadas a ler a Bíblia. Com relação à violência, continuará havendo tolerância e o motivo para se acreditar nisso está nas favelas do Rio de Janeiro, onde pastores e traficantes convivem bem. Há respeito para com os religiosos e os bandidos atendem apelos eventuais. Mas o tráfico permanece.
Visto com esperança por uns, o panorama causa desconfiança e provoca arrepios em outros. Especialmente em que acredita na máxima bíblica de que o crente “não pode se conformar ao mundo, mas deve transformá-lo pela fé” e que defende os valores expressos na Palavra de Deus sem restrições. “A Igreja
evangélica desprovida da ética cristã não consegue impactar a sociedade. Aliás, não precisamos esperar o futuro para ver o que acontecerá. Podemos observar hoje. Décadas atrás, falávamos em católicos nominais. Agora, já temos os
evangélicos nominais, aqueles que frequentam os cultos apenas atrás de bênçãos. Sem querer generalizar, mas vivemos uma crise de conversões no Brasil, já que vemos quase somente adesões”, alerta o pastor e pesquisador Paulo Romeiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Para ele, aqueles que usam a mídia para anunciar uma mensagem de salvação são raros e a situação só mudará caso esses líderes mais éticos tenham maior visibilidade. “A justiça, em todos os seus sentidos, não é mais preocupação de grande parte da Igreja cristã. Em parte, isso ocorre porque não há uma estrutura de poder que coíba abusos e manipulação de um líder carismático que manda sozinho lá no topo, coisa muito comum nessas denominações que mais crescem. Está na hora do trigo aparecer, para que a sociedade veja a diferença”.
Preocupação semelhante tem o também pastor e jornalista Silas Daniel. Nos últimos meses, o jornal do qual ele é o editor, o Mensageiro da Paz, órgão oficial de comunicação das Assembleias de Deus no Brasil, publicou uma série de matérias sobre o
Brasil evangélico em 2020 e perguntou a algumas das principais lideranças assembleianas se ainda é possível mudar tal quadro. A resposta é sim, mas o tempo está cada vez mais curto. “Apesar das denominações neopentecostais terem mais visibilidade, por causa da mídia, o crescimento
evangélico também atinge as organizações históricas e pentecostais. Essas precisam resgatar a mensagem sobre santidade, renúncia e humildade no lugar da auto-ajuda e dos discursos feitos para massagear o ego que tomaram de assalto os púlpitos. Só com ênfase renovada na exposição sadia da Palavra de Deus e na oração, culto após culto, poderemos virar o jogo”, adverte. Se o futuro não for assim, a velha figura do
evangélico com a Bíblia debaixo do braço será mesmo coisa do passado.
Revista Eclésia