De bata africana prateada com detalhes em azul, Santiago sai do carro e sobe no palco em meio a seguranças vestidos de preto, gritos e acenos. Quando ele aparece, a multidão – formada em sua maioria por jovens – abre faixas com seu nome, agita bandeiras e manda beijos. Ele agradece e sorri de volta. Luzes e música completam o cenário.
Não se trata de ídolo sertanejo, astro de novela ou vencedor de reality show. Valdemiro Santiago é o líder da Igreja Mundial do Poder de Deus. Como faz anualmente, ele veio a Moçambique para um culto de Natal e para se reunir com bispos, pastores, obreiros e seguidores da igreja, fundada em 1998 em Sorocaba (SP), depois que ele decidiu deixar a Igreja Universal do Reino de Deus, da qual foi pastor e bispo por quase 20 anos.
“Somos filhos da África e eu já morei aqui”, diz Santiago à reportagem da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), carregando uma grande Bíblia na mão direita e acompanhado da mulher. “Tenho impressão de que, quando nos juntamos, é como se as nossas raízes começassem a se manifestar. Estou muito feliz de estar aqui. Glória a Deus! Obrigado Jesus”, diz, lembrando que também irá passar pela África do Sul e Angola.
Minutos depois, o mineiro de Palma, de 47 anos, começa o culto: “Deus vai fazer milagres hoje aqui. Você vai ver gente curada agora. Paralítico vai andar, as dores vão sumir”. Gritos são ouvidos pela plateia, que ocupa boa parte do gramado da Praça da Paz, em Maputo. Pastores acodem quem passa mal e muletas são erguidas no ar. Exatamente como na TV, nos cultos transmitidos diariamente em uma emissora moçambicana (KTV) e várias brasileiras.
A Igreja Mundial é só uma das várias denominações evangélicas brasileiras que cresceram muito na África nos últimos anos. Pelas ruas de Maputo – e de outras cidades africanas, como Joanesburgo (África do Sul), Luanda (Angola) e Praia (Cabo Verde) – é possível ver várias construções com o coração vermelho e a pomba branca que identificam a Igreja Universal do Reino de Deus (ou Universal Church of the Kingdom of God, nos países de língua inglesa). Placas nas calçadas mostram onde se reúnem os seguidores da “Deus é Amor” em Maputo, “fundada em 1962 pelo missionário David Miranda”, como indica o letreiro.
O cristianismo chegou à África com os colonizadores europeus. Em Moçambique, a religião foi trazida pelos portugueses católicos. De acordo com o 3º Censo da População (2010), 5,7 milhões dos 20,2 milhões de moçambicanos são cristãos. Cerca de 3,1 milhões são protestantes de igrejas tradicionais e 2,9 milhões são evangélicos pentecostais. O islamismo chegou antes à região, principalmente, na parte norte do país e, atualmente, cerca de 3,6 milhões de pessoas se declaram muçulmanas. Se declaram seguidores de crenças africanas, 3,7 milhões de moçambicanos. Mas, como no Brasil, vários adeptos de uma religião não deixam de ir ao curandeiro ou de pedir proteção aos espíritos.
Durante os anos de governo socialista, o Natal foi oficialmente substituído no calendário moçambicano pelo Dia da Família. Mas, hoje em dia, árvores coloridas e bonecos de Papai Noel (chamados de Pai Natal, à moda portuguesa) vestidos para o frio voltaram a ocupar as vitrines das lojas, em meio aos 40 graus comuns nesta época do ano.
O Jesus Cristo das igrejas evangélicas chamadas neopentecostais é o mesmo; a Bíblia também. Mas cada pastor tem seu rebanho. Algumas igrejas pedem abertamente a contribuição do dízimo, obrigação que nem mesmo os habitantes dos países mais pobres do mundo parecem estar isentos. Outras fazem questão de indicar que o foco é outro. “Aqui não se vende milagre”, diz o apóstolo Santiago, durante pregação na última terça-feira (22) em Maputo. “E quem faz milagre é Deus, não é punhado de sal grosso”.
Mesmo tentando marcar diferenças, em pelo menos um aspecto as denominações evangélicas vindas do Brasil parecem estar de acordo: o combate ao que chamam de “feitiçaria, magia negra, coisas do demônio”, que acabam associadas às práticas de curandeiros e médicos tradicionais, tão comuns em toda África.
“Não há choque de culturas”, assegura o bispo da Mundial em Maputo, Leonardo Germano, nascido no Rio de Janeiro. “Para nós, estar aqui é uma grande alegria. Não queremos comparar ou dizer qual é melhor. Só queremos levar a palavra de Deus aos que sofrem”, diz, também de bata africana, branca com elefantes azuis desenhados no tecido.
Para Fernando Mathe, porta-voz da Associação Moçambicana de Médicos Tradicionais (Ametramo), o relacionamento podia ser melhor. “Os médicos tradicionais ficam até revoltados”, afirma. “Eles não gostam de ver suas práticas, cultura de tanto tempo, serem chamadas de lixo”. Ele acredita que é possível melhorar essa situação com mais de diálogo.
“Eu quero propor a eles uma grande reunião, uma conversa. Eles [as igrejas evangélicas] fazem bem ao povo, todos veem isso”, afirma, citando o trabalho social que as igrejas realizam no país. “Mas é preciso melhorar essa parte [relacionamento] conosco”.
Fernando conhece bem as diferenças entre evangélicos e médicos tradicionais: o pai dele é pastor há 40 anos. Romão Mathe passou a seguir a Igreja Cristã Zion – surgida nos anos 20 na África do Sul – depois de, segundo ele próprio, ter sido curado de uma inflamação na barriga. Como o filho, o pai de Romão também era médico tradicional. E, segundo Romão, nunca houve problemas na convivência.“Um salva com a imposição da mão; outro salva com o espírito. Mas é a mesma coisa – todos querem fazer o bem”, afirma.
“A igreja cristã tem um ‘deus ciumento’, mas, até agora, esse cruzamento de culturas tem sido positivo”, acredita Silvério Ronguane, chefe do Departamento de Ciências Aplicadas do Instituto Superior de Relações Internacionais de Moçambique. “É preciso manter um entendimento.”
Ele acredita que as “igrejas brasileiras” ajudam a reorganizar a vida social de muita gente que saiu do interior do país sem a família (vários empurrados pela Guerra Civil, que acabou em 1994) e perdeu suas referências. “A cultura africana funciona com base na família, clã, tribo. Os expatriados, ao vir de sua aldeia para cidade, já não têm esse conforto. Então acabam por ser as religiões de espírito pentecostal que fazem o papel que a tradição fazia, de cobertura comunitária.”
Estudioso das crenças tradicionais, Ronguane diz que os próprios curandeiros estão sendo influenciados pelas igrejas evangélicas. “Antes não se via anúncio de médico tradicional nas ruas; agora, eles existem”, afirma. “Estão bebendo do marketing agressivo [das igrejas].”
Essa “agressividade” já se reflete até no português falado na África. “Erres” e “esses” puxados, expressões no gerúndio e voz gutural são comuns nas pregações na televisão e no rádio. É preciso prestar atenção para notar se o pastor é brasileiro ou moçambicano. “Não há dúvida que as novelas e a música brasileiras [muito difundidas no país] contribuem, mas já há uma influência linguística indiscutível também por meio da religião”, diz o especialista.
Fonte: Agência Brasil e DCI / Gospel+
Via: Notícias Cristãs
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