César Rosalino, de 40 anos, fala por dez minutos até ser interrompido por uma voz melodiosa que ecoa de um dispositivo eletrônico no canto da sala. É hora da Asr, a oração do meio da tarde, realizada todos os dias pelos muçulmanos. Ele pede licença e, por alguns instantes, faz o ritual que consiste em agachar-se, ajoelhar-se e proferir versos em árabe. Após a pausa, Rosalino, que cultiva uma longa barba grisalha, deixa o idioma de lado e volta para o português recheado de gírias ao qual está mais habituado. “Senta aí, mano. Vamos continuar a conversa.”
Rosalino é o criador do Jihad Brasil, grupo de rap que transmite em suas músicas os ensinamentos do Alcorão. Palestina, Islã e Paz e Carta ao Poder são títulos das letras que ele compôs com amigos para o primeiro disco do conjunto, Fragmentos de um Muçulmano. Combativos, os versos criticam ações militares dos Estados Unidos no Oriente Médio e problemas no Brasil.
A fé e a música compõem a história de vida do morador da favela Cultura Física, em Embu das Artes (Grande São Paulo). O rap, no entanto, entrou em sua vida antes do islamismo. Batizado na Assembleia de Deus aos 12 anos, ele frequentou a igreja evangélica durante a maior parte da adolescência. "Sofria um certo bullying na escola porque andava de terninho, com a Bíblia embaixo do braço", diz Rosalino. "Achava que tudo era demônio", brinca.
Na juventude, longe da fé cristã, conheceu um amigo que o apresentou ao mundo dos bailes de música negra, sensação na São Paulo da década de 1980. "Comecei a frequentar festas como Chic Show, Black Mad, Zimbabwe. Foi aí que conheci o rap de verdade." Dali em diante, o contato de Rosalino com o ritmo que ganhava espaço no país se intensificaria.
No início dos anos 90, ele fundou o Reality Rap, sua porta de entrada na cena hip hop brasileira. Após deixar o conjunto e seguir carreira solo por algum tempo, Rosalino formou com amigos o Tribunal Negro, que, na virada para o século XXI, agregaria outros rappers para formar o Organização Xiita, primeiro trabalho de sua carreira com alguma inspiração islâmica.
Apesar do nome, não havia muito de Maomé nas canções do grupo. “Dei esse título porque li em algum lugar que se tratava de algo radical, mas não tinha muita noção do que era. Até gravamos um disco chamado Guerra Santa, mas sem nenhuma referência ao Alcorão”. Com os atentados de 11 de setembro de 2001, Rosalino sentiu-se desconfortável com o que fazia e acabou abandonando o conjunto. "Precisava parar e ler algumas coisas."
A fé do cantor ficou adormecida por algum tempo, mas o rap tratou reconectá-lo. À procura de uma batida para usar como base em uma de suas músicas, ele encontrou um Adhan (canto muçulmano usado para convocar à oração) que mudaria sua vida. “Eu me senti tocado ouvindo aquela canção e achei que ali era o momento de me reverter.”
A “reversão”, como os muçulmanos chamam a passagem para o Islã, aconteceu em 2008. Rosalino virou Kaal Luckman Abdul Al Qadir. A transição ainda marcou a criação do Jihad Brasil e a fundação da primeira mussala localizada em uma favela. O espaço, usado pelos muçulmanos para orar em direção à Meca, foi onde outro rapper do grupo, Cláudio Roberto, encontrou a religião.
Tímido ao conversar, Cláudio, que virou Omar Seth Ali, relembra o preconceito que sofreu nas primeiras apresentações do Jihad. "A gente se vestia a caráter e as pessoas estranhavam, chamavam de 'macumba'. Um dos momentos mais difíceis foi na abertura do show dos Racionais que fizemos. Era uma praça lotada, tremi na base. Mas depois que ouviram o nosso som as pessoas passaram a gostar."
Rosalino diz que, apesar de conseguir admiradores, o grupo não pretende fazer dele um instrumento para conseguir fiéis ao Islã. "Não somos proselitistas. Ninguém precisa se reverter quando ouvir as músicas. A única intenção é fazer as pessoas refletirem e entenderem que o Islã é, antes do tudo, uma religião a favor da paz. Se eu conseguir isso, já estarei realizado".
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