domingo, 21 de novembro de 2010

TESTEMUNHO DE TULIO FUZATO

Baterista que perdeu as pernas em acidente no metrô do Rio de Janeiro conta como conseguiu voltar a tocar

Por Leandro Duarte / Fotos: Arquivo pessoal

Imagine acordar e saber que perdeu as pernas. Foi o que aconteceu com o baterista Tulio Fuzato, que, em meio à depressão, teve um mau súbito, causado pela mistura de barbitúricos com álcool , e acabou caindo nos trilhos do metrô, no Rio de Janeiro, em 2003. Mas, no momento mais difícil da vida dele, a fé e a vontade de viver falaram mais alto. Hoje, aos 53 anos, Tulio, conhecido com o “baterista amputado”, conta como voltou a tocar o instrumento, fala das mudanças causadas em sua vida após o grave acidente e da importância de o deficiente físico se impor na sociedade.
Como e quando você teve as pernas amputadas?
Eu estava numa situação complexa, em junho de 2003. A agência de propaganda em que eu trabalhava faliu. Desempregado, estava afundando em dívidas. Havia acabado de me separar e tinha iniciado um relacionamento difícil. Passei a tomar barbitúricos ao mesmo tempo em que ingeria álcool. Essa rotina destrutiva fez com que eu tivesse um mau súbito em pleno metrô. Acabei caindo nos trilhos quando a composição chegava à estação. Tive as pernas esmagadas pelo acidente e, no hospital, só restou garantir a minha vida.
Com o que a dor que sentiu pode ser comparada?
A dor física foi dissipada no hospital. Mas a dor espiritual pode ser comparada a um sentimento de profunda perda. No campo psicológico, eu tinha perdido tudo e estava num luto profundo, pela falta do emprego, pela falta da estabilidade, pela ausência das pessoas amadas, etc. Foi um período muito duro, mas a força interior (leia-se Deus) falou mais alto, fazendo com que eu tivesse uma tomada de decisão e partisse para a reabilitação com o uso de próteses.
A perda das pernas representou o nascimento de uma outra pessoa?
Sem sombra de dúvidas. Este Tulio de hoje nem de longe se compara àquele antes de 2003. Eu tive que aprender a suportar a dor, limitações, ansiedade, preconceitos, inacessibilidade e dificuldades de todos os matizes. A minha fibra, a força de vontade e a insistência foram fatores decisivos para que eu pudesse "encarar" a nova vida. Coisas que me tiravam do sério hoje eu encaro na maior paz. (risos)
Como foi sua recuperação, desde a perda das pernas até o implante das próteses? Qual foi o momento mais complicado?
Foi complexo e cada caso é um caso. O momento mais complicado foi reaprender a andar. Mas de um modo geral, eu fui um paciente fora dos padrões comuns por ser um "bicho elétrico", o baterista amputado. Eu acho que depende muito do temperamento e do modo de encarar as coisas de cada paciente.
Em algum momento, você pensou em desistir, em suicídio?
Jamais. Era uma luta que eu tinha que abraçar com amor e resignação. Pensar até pensei, até porque a barra estava muito pesada mesmo. Amigos se foram, etc., etc. Mas o que mais me aborreceu foi que o resgate deu entrada no hospital como suicídio. E eu não estava consciente pra confirmar isso ou não. Acordei depois de voltar do Centro Cirúrgico já amputado.
Você é baterista há quanto tempo? Qual foi a sua emoção ao poder tocar de novo seu instrumento predileto?
Eu tocava desde garoto. Profissionalizei-me aos 18 anos, quando passei a tocar na noite e em estúdios. Dava aula também. Posso dizer que são 35 anos de “praia” ou mais. A emoção de voltar a tocar foi indescritível, mas foi um outro parto, porque comecei a usar uma peça eletrônica que simulava o som do bumbo (parte da bateria em que se toca com o pé direito). Logo, eu tocava caixa, bumbo e contratempo com as mãos. Depois, com a prótese, eu voltei a treinar o tônus muscular da coxa amputada e os movimentos repetitivos das levadas de bumbo e caixa. Hoje, toco normalmente. Só não toco músicas que tenham uma velocidade absurda, como heavy metal. Mas nem é meu estilo. Eu sou english hard rock setentista (apreciador do rock pesado inglês dos anos 1970).
Você sofre ou já sofreu preconceito?
Sim e ele existe. Não vamos tapar o sol com a peneira. Existem muitas histórias, algumas até hilárias. Mas o mais importante é o deficiente se impor. Teve uma situação em que o cara estacionou no supermercado na vaga para pessoas especiais. Eu fiz o gerente retirar o carro do sujeito para que eu pudesse botar o meu na vaga.
Você custeou sua recuperação ou foi pelo sistema público de saúde?
Uma parte foi pelo SUS, na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, e depois, através do meu site, consegui que uma empresa norte-americana doasse as próteses.
O que conforta e dá forças para seguir em frente?
A certeza de que Deus existe acima de tudo. A certeza de que todo esforço e luta resulta em algo positivo. A certeza de que o bem vence o mal, mesmo num mundo em que esses valores estão perversamente invertidos.
É verdade que é possível sentir a parte do corpo que se perdeu?
Sim. É a “dor fantasma”. Na verdade, você tem a perna ou um membro amputado, mas fica o neurônio no tálamo (centro de organização) cerebral que registra a existência do membro que, fisicamente, não está mais ali. Dependendo do caso, a “dor fantasma” pode durar mais de 20 anos. Mas, em geral, ela vai se dissipando a cada ano ou mesmo sumindo com a dessensibilização da área afetada.
Qual mensagem você deixa para os deficientes físicos?
Saiba que você perdeu um membro, amputou parte de seu corpo, mas não amputou o coração, amor pela vida e pelas pessoas, sua inteligência, seus sentimentos, sua capacidade e musicalidade, pois tudo é vibração. Se eu cheguei até aqui, qualquer um poderá fazer muito mais.
arca universal

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