quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Cruz Completa


Marcos 15.21-41


Introdução:

         A revista Época, na edição 202, de amanhã, 01/04/02, em reportagem de Antonio Gonçalves Filho sobre os "evangelhos apócrifos", ressalta que a Páscoa deveria ser a data mais importante para o cristianismo, mais até do que o Natal, visto que o Cristo crucificado e ressuscitado é o centro da fé que move dois bilhões de pessoas no mundo.
Sem a crucificação e ressurreição de Cristo não haveria igreja e nem esperança a ser celebrada no memorial da Ceia, pois não teríamos evangelho que se proclamasse. Creio que o próprio Cristo queria criar em seus discípulos este sentimento, pois em Marcos 8.34 ele instiga o imaginário popular ordenando a tomada individual da cruz por parte de cada discípulo.
         Tomar a cruz implica na negação de si mesmo, o que não é meramente uma exortação. É uma ordem. Devemos negar o próprio eu, dando as costas à idolatria e ao egocentrismo. Negar-se a si mesmo é muito mais do que abandonar a prática usual de pecado. É colocar-se em inteira e incondicional submissão ao Cristo crucificado.
         Tomar a própria cruz é muito mais do que pensar nos sofrimentos naturais ou nos problemas existenciais que nos afligem. A cruz era instrumento de crudelíssima tortura e seu patibulum - a viga horizontal da cruz - devia ser carregado pelo condenado em vias públicas até o local da execução, tornando patente a sua desonra e humilhação. Crucificar alguém era como desnuda-lo de sua dignidade e promover o esvaziamento de todos os seus conceitos existenciais. Tomar a cruz exige, por isso, uma dedicação absoluta e uma identificação ideológica, física e espiritual de nossa parte para com Jesus, sem precedentes na história da humanidade.
         Segundo o ensinamento de Jesus mesmo, tomar a cruz significa fazer de nossas vidas um hábito peculiar de seguir o seu exemplo, sem contestações ou ajustes aos interesses pessoais que destoam da propositura do evangelho. Afinal, assevera John Stott no livro A Verdade do Evangelho, a fé cristã e a fé do Cristo crucificado. Diria que além de ser a fé do Cristo crucificado, a fé cristã é a fé do povo que se predispõe à crucificação diuturna na busca de ideais cristocêntricos, cristológicos e cristossímeis. A fé cristã é a fé das pessoas que tomam a cruz completa.
         Vejamos em seguida, alguns momentos específicos na vida de Jesus que nos orientam para o entendimento do que seria a nossa cruz completa.

  • O Batismo - Mateus 3.13-17:

        Se observarmos o texto com a devida atenção, verificamos que o batismo de Jesus não foi um mero ritual. Foi para cumprir toda a justiça de Deus, verso 15, o que indica que aquele ato era uma confissão pública de compromisso assumido. Compromisso motivado pela renúncia deliberada a partir da interação da Palavra de Deus na mente e no coração do homem Jesus, como deveria ser em nossas mentes e em nossos corações.
Vemos também que foi por imersão, verso 16. Jesus saiu da água, o que significa que o envolvimento era total e irrestrito. Não houve partes ou particularidade da vida de Jesus que tenha ficado de fora do compromisso messiânico. A totalidade do ser se entregara para a missão assim como deveríamos nos entregar integralmente, sem restrições, ao Senhor que nos comissiona.
         Além disso, vemos que o batismo de Jesus foi um cerimonial promovido pela ação do Espírito Santo, verso 16. Jesus estava totalmente revestido de unção e de poder do Espírito Santo, como nós deveríamos estar hoje, como igreja, para realizar as obras que realizou e para ministrar a sua graça salvadora em cumprimento da profecia de Isaías, como nos indica Lucas 4.17-21.
         Uma última peculiaridade do batismo de Jesus, que deveria ser realidade em nosso batismo, foi a alegria que aquele momento proporcionou ao coração de Deus. Jesus realmente abdicou de seus interesses humanóides para assumir o propósito de Deus como monotético fator de motivação de sua vida.
         Se Jesus não tivesse sido batizado a cruz não teria significado sacrificial, mas apenas penal.
         Um outro momento significativo na trajetória de Jesus para a cruz foi...

  • A Tentação - Mateus 4.1-11:

        Por mais absurdo que pareça, era propósito de Deus aquela experiência controversa na vida de Jesus, assim como muitas vezes o é em nossas vidas, verso 1.
         A tentação exigiu de Jesus preparo e firmeza espiritual, verso 2, visto que foi um confronto direto com o diabo. O mesmo nos é exigido hoje. Satanás insiste em nos induzir, como tentou fazer com Jesus, à soberba, à idolatria, à apostasia e a pratica sucessiva de pecados, seja pela banalização dos conceitos ético-cristãos ou pela admissão de uma postura sociológica que cristianiza costumes antagônicos a Palavra de Deus.
         A vitória de Jesus, que será também a nossa vitória, foi pela Palavra de Deus, a partir do conhecimento associado a ação prática do Texto Sagrado, versos 4; 7 e 10. Não foi um ato de bravura ou um feito sapiencial, foi vivência prática da Palavra.
         Se Jesus não tivesse vencido a tentação a cruz lhe seria merecida, anulando assim o seu significado vicário.
         Um terceiro momento que muito nos ensina sobre a nossa cruz completa é...

  • O Getsêmane - Mateus 26.36-46:

        Este foi um momento de angústia e de profunda depressão, verso 38, para Jesus, quando ele se derramou em intensa intercessão, prostrando-se em aviltante e plena submissão a Deus, no afã de cumprir o propósito salvífico, verso 39.
         Muitas vezes nos sentimos como Jesus, mas diferente dele, reagimos com lamúrias, com questionamentos e com blasfêmias reclamando da solidão que faz ressoar altissonante a confrontação direta entre a devoção sincera e a fraqueza humana, versos 40-41. Muitas vezes nos vemos pressionados pelo desafio de resistir e vencer, apesar das cicatrizes que ficarão, ou de ceder e nos retirarmos covardemente para nos entregarmos a mediocridade espiritual.
         Para Jesus, o Getsêmane foi um momento de resignação, verso 42, como deve ser para nós. Todo o cristão tem o seu Getsêmane. É o momento no qual é testada a nossa capacidade de resignação, bem como a nossa fibra espiritual diante da traição que dilacera o coração devido a negação do amor que demonstramos, versos 45-46. Mas, como Jesus, devemos resistir e vencer a depressão, encarando o traidor sem nos demovermos do objetivo espiritual traçado por Deus em tal experiência.
         Se Jesus não resistisse a amargura do Getsêmane Filipenses 2.5-11 jamais teria sido escrito pelo apóstolo Paulo. O cristianismo não seria nada mais do que o propalado pelo postulados marxistas, "o ópio do povo".
         Depois disto Jesus passou por experiências amargas no Sinédrio, o tribunal supremo dos judeus que impunha obediência ao sistema mosaico, e diante de Pilatos, o governador romano representante de César na Palestina, chegando ao momento último de sua trajetória messiânica, que foi...

  • A Crucificação - Marcos 15.21-41:

        Jesus não apenas nos ordenou a tomada da cruz, como ele mesmo tomou a cruz para a nossa salvação.
         A crucificação teve início no pretório, o pátio da guarda romana. Jesus foi colocado na presença de uma coorte, onde vestiram-no de púrpura, um tecido fino e valioso, e em sua cabeça colocaram uma coroa de espinhos. Todos os soldados o saudavam, debochadamente, como a um rei, pois esta era a acusação que sobre ele recaía; Jesus Nazareno Rei dos Judeus.
         Segundo o Dr. José Humberto no livro As Três Horas do Calvário, a coroa de espinhos encravou-se na caixa craniana, perfurando os ossos, dilacerando o couro cabeludo e rasgando-lhe a fronte, no momento em que os soldados batiam em sua cabeça com a cana, o suposto cetro de sua majestade. Batiam na cabeça e cuspiam-lhe no rosto, ajoelhando-se diante dele em atitude de suposta adoração, que na verdade era inenarrável blasfêmia, versos 16-20. Eram 600 homens fortes e devidamente preparados para a guerra torturando a Jesus.
         Jesus, enfraquecido devido a situação degradante a que fora submetido - levara 39 chibatadas, verso 15 - chega ao Gólgota carregando o patíbulo de sua cruz. Vale ressaltar que no caso de Jesus a cruz era mais pesada que o usual, pois do sinal do cravo de uma mão até o sinal da outra Jesus tinha uma envergadura de 1,70m, conforme pesquisa científicas no Santo Sudário. No Gólgota, ofereceram uma espécie de droga para embotar os sentidos de Jesus, o que ele rejeita, preservando a sua lucidez e sofrendo todas as dores que lhe foram impostas, validando assim o seu sacrifício e consolidando a sua vitória contra o inferno, a morte e o pecado, verso 23.
         Às 09h00 crucificaram a Jesus. Primeiro pregaram as suas mãos com cravos de 12 a 15cm no patíbulo. Eram quatro marteladas para se perfurar cada mão e mais oito em cada cravo para se perfurar e prender bem cada mão na madeira. Depois, com desprezo e brutalidade, pregaram o patíbulo na estaca vertical, colocando uma minúscula banqueta pontiaguda para que ele sentasse, evitando assim um colapso devido as contorções do corpo e postergando a agonia e o sofrimento. Em seguida, juntaram-lhe os pés, pregando um no outro com oito marteladas, para então pregarem os dois na madeira com mais doze marteladas. Por fim, levantava-se a cruz deixando o crucificado exposto ao causticante sol da Palestina.
         A morte na cruz era por asfixia mecânica ou por hemorragia, visto que para respirar era necessário se levantar o corpo, dilacerando as mãos e os pés, a cada movimento, bem como comprimindo cada vez mais a caixa torácica sempre que se respirava um pouco mais fundo.
         Cumpre-se a profecia de Isaías 53.12. Não só pelo fato de Jesus estar entre os transgressores, mas principalmente por ter ele tomado sobre si o pecado de muitos, versos 27-28. No decurso das horas, zombaram de Jesus insultando-o e mandando-o descer da cruz para salvar-se a si mesmo.
         Queriam um milagre para que pudessem crer, visto que não foram capazes de entender que o milagre era a própria cruz. Na cruz reside o milagre da salvação e do perdão de pecados, versos 29-32.
         O Texto informa que do meio dia até às três horas da tarde a Terra escureceu. A ciência afirma ser impossível pensar em um eclipse na ocasião por ser período de lua cheia. John Stott, no livro A Cruz de Cristo, diz que aquela escuridão era uma espécie de símbolo externo das trevas espirituais que envolveram a Jesus naquele momento.
         Às três horas da tarde Jesus clama em alta voz: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste", citando o Salmo 22.1. Um terrível grito de abandono, o sentido é de deserção mesmo, indicando que naquele momento Jesus entendera que se havia consumado o propósito divino para a nossa salvação, sentindo na própria carne o peso da justiça de Deus e satisfazendo-a, para a nossa justificação. Jesus conhecia as Escrituras e viu cumprir-se plenamente em si mesmo a Palavra do Senhor a Moisés em Deuteronômio 21.22-23; "maldito todo aquele que for pendurado no madeiro".
         As pessoas ao redor não compreenderam o que se passava e esperavam que Elias, o profeta, viesse para salvar a Jesus. Mas não há profeta, pastor, guru, santo ou papa capaz de nos salvar. A nossa salvação só é possível no Cristo crucificado e ressuscitado, versos 33-36.
         Jesus morreu. O véu do Templo se rasgou de alto a baixo dando início a uma nova aliança; o pacto no sangue que nos purifica de todo o pecado. A cruz foi um momento de dor, de humilhação, de desamparo para que na realidade pudesse ser o momento de maior manifestação de amor e de redenção. O cruento momento da cruz é o momento da vitória.
         Se Cristo não padecesse a morte na cruz não haveria vitória para celebrarmos. O pecado nos teria derrotado a todos.

Conclusão:

         Desejo concluir dizendo que ainda hoje Cristo nos chama para negarmos a nós mesmos. Jesus quer que tomemos a nossa cruz em sua inteireza e o sigamos. Portanto, se estamos dispostos a carregar a nossa cruz e se estamos realmente seguindo a Jesus, há somente um lugar para onde podemos estar indo: para a morte. Não há como seguir a Jesus, não há como ser igreja, se nos acovardamos diante da cruz.
         Stott assevera, em A Cruz de Cristo, que movido pela perfeição do seu santo amor, Deus em Jesus substituiu-se por nós, pecadores. Esta substituição é o coração, o epicentro da cruz, tornando o cristianismo evangélico em uma religião pautada em uma incondicional cruzcentricidade experiencial e espiritual.
         Tomar a nossa cruz é o desafio. Não uma cruz de isopor, de néon, de mármore em um epitáfio ou de ouro para enfeitar a lapela, mas a cruz completa. A cruz que inicia no compromisso assumido publicamente no batismo. A cruz que nos capacita para vencermos a tentação e que nos mantém a fibra espiritual nos deprimentes tenebrosos getsêmanes que sofremos.
         Devemos tomar a cruz completa. A cruz que mortifica o nosso ego. A cruz que vicariza os nossos pecados e que nos faz contados dentre os malfeitores. Devemos tomar a cruz que nos leva ao sentimento de que somos malditos de Deus, desamparados e sem alternativas, a não ser a rendição taciturna voluntariosa, como a de fez Jesus, conforme o relato de Lucas 23.46; "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito".
         Amados irmão e irmãs, a cruz completa é a cruz do testemunho público, do confronto direto como o diabo e a da angústia que muitas vezes nos faz derramar o sangue da alma devido a humilhação, o escárnio e o abandono. Se suportamos a tamanha dor; se suportamos agonizante sofrimento e se ressuscitamos depois de cruenta morte a cada dia, podemos bradar ao mundo que estamos crucificados com Cristo. Não nos incomodamos mais com as circunstâncias da vida, pois temos no corpo as marcas da cruz; temos as marcas da salvação, Gálatas 2.20 e 6.17. Amém.


Autor: Pr Fernando Fernandes

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